Paixão de Bravo, de Nicholas Ray

O faroeste está ao fundo. Não foi esquecido. Nos créditos iniciais e em algumas apresentações nas arenas de rodeio, os símbolos americanos pululam. Bandas, caubóis, índios, os vencedores e o suposto respeito ao dominado. Veríamos o quanto bancar esse show é uma necessidade – e beira a idiotia – em Oeste Selvagem, de Robert Altman.

O show oferece uma selvageria domada, quase repetitiva. O protagonista de Paixão de Bravo conhece bem esse espaço e, no ponto em que essa história começa, está cansado de jogar nas arenas, sobre os animais, para viver alguns segundos de glória. Após sofrer reveses, mancando, ele procurou o caminho de casa. Esse homem do mundo, diz Nicholas Ray, não esquece nunca suas raízes: ao reencontrar a antiga casa, agora aos pedaços, procura seu esconderijo dos tempos de criança, o buraco onde escondia brinquedos.

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Essa ação aparentemente pequena explica tudo e nos ajuda a compreender a grandeza do homem silencioso vivido por Robert Mitchum. Na pele de Jeff McCloud, ele tornou-se uma lenda dos rodeios. Ganhou algum dinheiro e o perdeu rapidamente. Ainda vive de caronas. Ainda mantém a aura intacta – o que logo chama a atenção de um casal.

Na mesma moradia em que guarda o passado longínquo, esbarra em Wes (Arthur Kennedy) e Louise Merritt (Susan Hayward). Ele quer se tornar um caubói de rodeio, ela quer ser dona de casa. Jeff está entre ambos – para acentuar a tensão sexual no contato com ela, para levar o novo amigo às redomas de disputa, cidade a cidade, a bordo de um carro.

O protagonista adota o outro como pupilo e, nas arenas, fica com metade de seus ganhos. A contragosto da mulher, a quem a aventura não agrada, mas que cede à vontade do companheiro – que promete retornar à vida estável quando o dinheiro for suficiente para comprar uma casa. O problema é que essa viagem é excitante, vicia o novo jogador e, de show em show, aos gritos do público, Wes gosta da ideia de ter dinheiro de sobra.

Ray apresenta personagens que se refletem e se refratam, a tensão sexual que permeia a vida de dois homens quando a mulher põe-se ao meio. Um filme áspero, de fotografia às vezes realista, de aparente confusão e desgosto quando as imagens com profundidade de campo, de autoria de Lee Garmes, impõem achatamento, alguns vários rostos e corpos no mesmo quadro, um bando de pessoas pelo qual não sentimos qualquer empatia.

Para nossa incompreensão, é desse mesmo meio que saiu Jeff – e ao qual, em parte, ele retorna. O amor velado pela mulher do outro explica tudo: ele, o homem sem destino, é o passo seguinte, alguém que não quer mais viver no universo dos rodeios e tampouco pode voltar atrás e mudar. A única maneira de deixar uma marca é apelar ao sacrifício.

Mitchum é a consciência do filme. Sabe que Wes será alguém que ele já foi e que a Louise caberá o papel da mulher do atleta que corre riscos, que a qualquer momento pode ser esmagado por um boi. Jeff assiste ao menor desenrolar como se já soubesse de seu desfecho e, a certa altura, quando Louise vai a uma festa – de vestido preto, visual deslumbrante – à procura do marido, ele tenta resistir a seu papel.

A mesma história, com algumas variações, foi contada mais tarde por Martin Scorsese em A Cor do Dinheiro: dois homens – um experiente, o outro um jovem talento – nas estradas, na companhia de uma mulher (a companheira do mais jovem), atrás de mesas de sinuca para apostar e talvez lucrar alto. O jogo, as festas, as bebidas, a vaidade.

Em um ensaio sobre Paixão de Bravo, Wim Wenders analisa o significado do rodeio e os sinais do faroeste. “O que aí se festeja, no fundo, é a conquista do Oeste: com estes animais e estes jogos de destreza, tomou-se posse de todo o território.” O que se representa é a força do homem branco, seu domínio, o simulacro do território como picadeiro.

Cineasta moderno, Ray reflete sobre sua nação a partir do homem que não aceita perder as próprias raízes. Quando Wes diz que não quer mais Jeff como sócio, que cansou de dividir seu dinheiro, o protagonista não esboça surpresa. Estava no roteiro. Era questão de tempo para que o pupilo saltasse do acordo e buscasse carreira solo, para que terminasse nos braços de alguma bela menina chegada a bretes e festas de rodeio. O que há de mais triste aqui é que apenas Jeff pode salvar Wes, ainda que lhe custe a vida.

(The Lusty Men, Nicholas Ray, 1952)

Nota: ★★★★☆

AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

Veja também: Bonnie e Clyde, por Pauline Kael

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