Tudo muda, e tudo continua o mesmo

Os cinco filmes que compõem a série Os Documentos da Yakuza oferecem uma jornada interessante. Seu realizador, Kinji Fukasaku, fez o que alguns chamam de O Poderoso Chefão do Japão, uma narrativa sobre a máfia, com guerra entre clãs, uniões, dissoluções, ataques armados e a impressão de que nada muda apesar de tanta movimentação.

Fukasaku tem total consciência disso: ao escolher uma personagem para colocar no centro de sua história, um ex-soldado do Japão derrotado, nos anos 1940, ele apenas oferece um guia para essa constatação: ao longo de aproximadamente 25 anos, o poder passa por diferentes mãos, líderes ascendem e morrem, e no fim o jogo segue o mesmo.

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Lembra-nos, claro, da famosa frase de O Leopardo, do livro de Giuseppe Tomasi di Lampedusa levado ao cinema por Luchino Visconti em 1963: “Se queremos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude”. A frase é uma meditação perfeita sobre o poder, e serve para diferentes contextos, diferentes histórias de grupos e homens que resolveram fazer uma “revolução” para que nada de profundo fosse abalado.

Uma forma de nos dizer que, a despeito de sistemas e práticas, de leis e constituições, o jogo é sempre o mesmo, e os jogadores terminam por reprisar seus antecessores. Tal como o novo soldado da Yakuza na série de Fukasaku, em O Leopardo a visão dessa falsa transformação fica com sua personagem central, o príncipe interpretado por Burt Lancaster. Perceber a pouca mudança nas práticas do poder ao redor não o impede de constatar o quanto os novos jogadores são espiritualmente pobres, que as hienas tomaram o lugar dos leopardos.

A máfia é um sistema de poder. Da primeira à terceira parte, O Poderoso Chefão, de Francis Ford Coppola, aborda as tentativas de um homem, Michael Corleone (Al Pacino), de estabelecer seu reinado de poder. Desde o começo, ele percebe que não há forma de continuar a não ser com derramamento de sangue – incluindo, na segunda parte, o do próprio irmão. Do primeiro ao último capítulo, os jogos quase não mudam e custam a vida de muitos.

O Poderoso Chefão representa, como O Leopardo, um velho mundo de salas fechadas, e com alguma elegância seus homens tentam desviar da vulgaridade. Matam usando terno e gravata. Na reunião entre famílias, exaltam os outros, soam como políticos profissionais. Na segunda parte, Michael conversa com um senador e faz questão de lembrar que ambos, mafioso e político, vivem sob a mesma hipocrisia. E dividem os mesmos gabinetes.

O Michael Corleone do último episódio é outro, um homem idoso, calejado, menos agressivo, decidido a abrir mão de seu reino. O problema é que as velhas práticas ainda se impõem. O problema é outro: é o velho homem, que viveu o jogo e o praticou à exaustão, que não quer mais fazer parte. Até descobrir, com nova tragédia, que isso é impossível.

Os que se aproveitam dos ventos da mudança são um tanto previsíveis. Quando seu sobrinho (Alain Delon) procura-o para contar uma novidade, perto do fim de O Leopardo, o príncipe de Lancaster nem precisa ouvir de sua boca para saber do que se trata. O jovem vai concorrer a um cargo político. O próprio príncipe havia sido convidado a assumir o cargo de senador na república nascente, o que foi recusado. O sobrinho, em sua sede de poder, em seus lances oportunistas, é uma hiena educada, bem vestida. Também bem casada. Alguém que abraçou uma revolução, vestiu um traje vermelho e, no fim, curvou-se à boa e velha política.

Publicado originalmente no Jornal de Jundiaí em 03 de maio de 2023.

AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

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