A grandeza da história de amor é garantida apesar de o casal central não funcionar. Em Sedução da Carne, de Luchino Visconti, o amor revela-se no isolamento, na distância, na estranheza entre seres enredados também à causa política: ela como a condessa nacionalista que, apaixonada e descontrolada, permite que o sentimento ultrapasse o engajamento; ele como o oficial austríaco do qual mulher nenhuma escapa.
Curta nossa página no Facebook e siga nosso canal no YouTube
Nenhum deles, sabe-se cedo, encontrará a felicidade: essa história de amor em tons envelhecidos está fadada a dar errado desde seu início. De novo, o espectador reconhece, fareja o que está fora do lugar – o que culmina com a mulher perdida, nos instantes finais, vestida de preto, rente aos paredões; com o homem fuzilado.
Fala de sentimento, não da “sedução da carne”, como diz o título brasileiro. O que talvez tenha ajudado a inflamar a crítica a Visconti feita pelas esquerdas da época. Não era “histórico” o suficiente, era apaixonado demais, confinado demais, de aparência retocada, como aquelas pinturas caras para se pregar em um museu.
É intenso nos gestos de paixão, com figuras, a começar pela condessa, que se contentam em viver sob esse fogo constante, aos gritos quando consumidas pelo inesperado, a correr todos os riscos – ainda que o outro, o amante, nem sempre os mereça. E é, sim, estranhamente histórico, não tão longe, não tão perto do interior humano.
A figura do oficial pouco a pouco se revela odiosa, pequena, o retrato do dominador que não quer estar ali, covarde que caça mulheres ricas para tomar dinheiro, para conseguir comprar sua liberdade com um falso atestado médico. Nesse conflito (histórico) entre dominadores e nacionalistas se esconde um mundo real de sentimentos.
Há, inclusive, uma explicação implícita para a vitória inevitável dos italianos: a mulher, tão apaixonada, tão disposta a seguir seu coração, não se deixa inclinar àquilo que corre ao lado – seja uma revolução, seja o conforto, seja a sobrevivência – e se deixa consumir pelo sentimento a ponto de enlouquecer. Está disposta a morrer por algo.
Do outro lado, o dominador austríaco não quer mais que conforto, do qual desfruta a partir do dinheiro que retirou da amante casada. Vive na companhia de belas prostitutas, à base das cartas que manda à protagonista (nas quais joga com o fingimento), e por isso mesmo não serve à batalha que corre do lado de fora.
A mulher casada é a condessa Livia Serpieri. No papel, Alida Valli olha para o nada, desvia, e deixa ver o que sente. Ele, o verdadeiro falso dessa história, é Farley Granger. Ao fim, quando ela procura-o, descobre o embuste, o derrotado em túmulo pequeno-burguês, em roupão de banho, ao efeito de bebidas, ao lado de uma companhia de ocasião.
O grande filme de Visconti inicia no teatro. Juras de amor são seguidas por gritos de guerra. Todo o filme está ali. Quando a guerra vem, do lado de fora, será feita como pintura da mesma época, do Risorgimento. Pintura que não permite ser tocada, ser feia demais, que desvia da sujeira da verdadeira guerra. Visconti aferra-se à beleza.
A euforia do início, dos palcos e dos camarotes de adornos dourados, sintetiza ainda um espaço destinado às interpretações, à arte como refúgio: lados diferentes da guerra estão ali, antes, como espectadores, à espera de algum movimento, dos panfletos lançados à plateia pelos nacionalistas à tentativa de ver tudo com indiferença pelos invasores.
Visconti não deixa escapar a figura humana em luta com (e contra) seus próprios sentimentos, isolada, que é o que é, de necessidades salientes mesmo sob a menor expressão, contra os fatos históricos, as ações políticas. Chega a ser nobre toda a cegueira de sua bela Alida Valli, mulher que, de tanto amar, só pode mesmo enlouquecer.
(Senso, Luchino Visconti, 1954)
Nota: ★★★★★
Veja também:
Paisà, de Roberto Rossellini
Um filme espetacular,arrebatador!!!!
Concordo contigo. É brilhante.