Os Fabelmans, de Steven Spielberg

O pai representa a ciência e seu mundo complexo. Quando precisa explicar para o filho o que é cinema, nos primeiros instantes de Os Fabelmans, fala de vários quadros por segundo, várias fotografias, correndo perante os olhos, e que os olhos não dão conta de enxergar suas separações. A velocidade leva à impressão de movimento.

A mãe representa as emoções e seu mundo igualmente complexo, mas compreensível, intimista e inegavelmente convidativo. “Os filmes são sonhos”, diz ela, também nos primeiros instantes, pouco antes do casal e o filho, Sammy Fabelman (Mateo Zoryan), entrarem na sala de cinema para assistir O Maior Espetáculo da Terra, de Cecil B. DeMille.

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Após a sessão, no carro da família, a criança não fala. Ainda processa o que viu pouco antes. Ela temia pelos homens gigantes da tela antes de conhecer o cinema. Mais tarde, em casa, presenteada com um trem de brinquedo pelo pai, observa seus movimentos. Seu olhar denuncia a falta de algo. Ela quer mais que um objeto que apenas gire e não saia do lugar. Quer ação. De novo o pai não a compreende e a mãe abre-lhe caminhos.

A mãe, Mitzi Fabelman (Michelle Williams), é quem entrega ao filho sua primeira câmera – que era do pai. Assim ele poderá fazer o trem colidir-se com um carro – a recriar a famosa cena do filme de DeMille – e assistir à ação para sempre, ou quantas vezes quiser, no interior de seu armário escuro. Será este o primeiro segredo entre mãe e filho.

No filme que Steven Spielberg fez sobre si mesmo, a mãe é a alma que alimenta o menino e o move à arte. Ela própria é uma pianista que poderia ter feito sucesso não fossem as obrigações da mãe de família, não fossem os filhos dos quais cuidava enquanto o pai Burt Fabelman (Paul Dano) trazia o sustento para casa e, a cada novo emprego, precisava mudar, o que fez com que a família conhecesse diferentes cidades dos Estados Unidos.

É graças aos seus pequenos filmes que Samy (depois vivido por Gabriel LaBelle) consegue enxergar sua mãe: quando descobre, com o correr da película, que ela tem um caso amoroso com o melhor amigo de seu pai, Bennie (Seth Rogen), descobre uma mulher de emoções guardadas, de vida incompleta, alguém que renunciou a muito por muito.

Essa descoberta, na adolescência, marca o início de uma vida adulta, a enxergar o universo complexo das emoções moldadas a desencaixes, à medida que as peças soltas do roteiro de Tony Kushner e Spielberg começam a fazer sentido. A grande lição de cinema obtida por Sammy – muito antes de encontrar John Ford, seu charuto de estimação e sua ideia sobre o ponto ideal do horizonte no quadro – está nos pequenos segredos guardados na película, nas descobertas que só conseguimos fazer quando vemos um filme pela segunda ou terceira vez, quando aceitamos que a câmera não é só uma máquina de produzir registros.

Para Spielberg e Kushner, crescer não é só descobrir a forma errática dos adultos, dos exemplos que aprendemos a cultuar, a começar por pai e mãe: é, sobretudo, enxergar o que passava despercebido. Nesse sentido, o cinema é muito mais que um veículo de ação à criança que cresce e continua a fazer filmes, que em dada altura deixa a câmera de lado para depois resgatá-la em noite chuvosa, a não negar um dom a si mesma.

O cinema deixa de ser apenas uma motivação para ser um elemento dramático: há filmes que amamos odiar porque expressam o que com frequência negamos, as imperfeições que poderiam passar em branco aos olhos de uma criança e não escapam aos de um adulto. Essa relação de amor e dor que leva à criação de heróis e monstros às vezes de forma inconsciente passa pelo filme todo, um dos mais apaixonados da carreira de Spielberg.

Em uma das escolas que frequenta, Sammy descobre desavenças e o amor. Seu pai e mãe estão prestes a se divorciar. Tudo vira de cabeça para baixo de repente. Os meninos culpam-no, por ser judeu, pela morte de Jesus e, no quarto de sua primeira namorada, típica jovem cristã americana, ele depara-se com diversas imagens de Cristo na parede.

Spielberg e Kushner questionam nossa adoração aos mitos. O cinema faz o mesmo, mas não a esconde. Somos seres que precisam da ficção, de narrativas e muitas vezes não nos reconhecemos na imagem refletida – como ocorre ao bonitão da escola (Sam Rechner), o menino que todas as meninas querem namorar, que recebe de Samy, na película, o tratamento esperado. Ele sabe de sua própria falsidade e, talvez pela primeira vez, viu como os outros o enxergam. Descobre o quanto é ruim ser um clichê, o herói louro, musculoso, que ao fim termina com a bela menina da escola, vítima do roteiro que ajudou a criar.

Ao longo de sua carreira, Spielberg moldou alguns clichês e nunca escapou a outros que o antecederam. É devoto aos sonhos até quando olha a si mesmo; seu percurso homenageia a mãe, o pai, as irmãs, o amigo da família, as avós, o tio até então desconhecido (Judd Hirsch) e talvez todas essas pessoas não tenham existido exatamente como nos mostra. Os Fabelmans não perde a força nem sob uma suposição. Nem poderia.

É graças à lição da mãe – “os filmes são sonhos” – que o pequeno Spielberg termina na sala do mestre Ford, o autor dos vários faroestes que sintetizam o espírito americano, que certamente fizeram do judeu que sofreu bullying na escola alguém melhor. Rodeado por cartazes dos filmes do mestre, sob as faces de John Wayne e James Stewart, o menino espera para conhecer a lenda – e ela, como sempre a imaginamos, Spielberg não nos nega.

(The Fabelmans, Steven Spielberg, 2022)

Nota: ★★★★☆

AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

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