A Nave da Revolta, de Edward Dmytryk

Há apenas uma personagem que se aproxima da vilania em A Nave da Revolta – e, ao contrário do que podem crer alguns, não é o capitão Philip Francis Queeg, interpretado por Humphrey Bogart. Aos cantos, sem deixar perceber seu peso, está a verdadeira serpente, vivida pelo igualmente grande Fred MacMurray.

A ausência de um duelo amplia suas diferenças e nos confunde ainda mais. A relação sobrevive como se secundária fosse. O que se sabe de Queeg vem de sua fraqueza oculta sob o semblante autoritário; do tenente Tom Keefer (MacMurray) fica o movimento cuidadoso – a conspiração – para colocar todos contra o superior, o novo capitão.

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O Caine é um navio secundário, menos importante aos dias e noites agitados da Segunda Guerra Mundial. Pedaço de metal sobre as águas do mar no qual nem todos desejam estar: espaço verdadeiramente sujo, de desleixo, de paredes para se escorar, quando cada homem por ali não está muito disposto a mudar. Fazem apenas o suficiente.

Depara-se com esse ambiente em que tudo contraria o sonho da Marinha Americana o jovem tenente de currículo invejável, o certinho à saia da mãe, Willie Keith (Robert Francis). Não fossem tantos homens em cena, tantas pontas a unir, A Nave da Revolta, de Edward Dmytryk, poderia ser descrito como um filme sobre a descoberta do mundo adulto.

Nesse sentido, Keith é quem mais se aproxima do protagonismo, lado a lado com o público, que nem tudo sabe sobre seu novo superior, e que acredita saber tudo sobre o superior anterior, o capitão que permitia o desleixo e, substituído, não recusou o relógio dado pelos inferiores. Ninguém cogitaria algo do tipo ao durão Queeg.

Dmytryk, em cores fortes, expõe um poderoso estudo das relações de hierarquia, da necessidade de autoridade para alguns, ou quase uma amostra evidente da burrice das forças armadas – o que não se reduz aos Estados Unidos. Uma briga entre experientes que erram com inexperientes que acreditam estar certos enquanto seguem iludidos.

No fim das contas, o saldo não é dos melhores: não temos alguém para agarrar, ou para crer, em A Nave da Revolta. Todos, entre argumentos e conflitos, debatem-se para manter o navio inteiro, justamente aquele pedaço de metal no qual os jovens prodígios saídos das melhores universidades não querem estar. Em seu espaço, a briga é por autoridade, conflito que se limita ao interior dos homens de farda, fruto da vaidade e da necessidade de poder.

Em um momento de guerra como o retratado, a necessidade de ordem faz da vida nesse pedaço de metal algo insuportável: ainda que deixe ver sua fraqueza, seu vacilo, a personagem de Bogart não suporta se dobrar aos outros; ainda que mova as peças, causando confusões, Keefer prefere as sombras, sem esconder a face de satisfação.

O fim leva ao tribunal – a exemplo de Sindicato de Ladrões, do mesmo ano. Tanto Dmytryk quanto Elia Kazan podem ter usado seus filmes para justificar uma posição no tabuleiro do macartismo. Peças centrais no tribunal, suas personagens (Brando em Sindicato; Van Johnson em A Nave da Revolta) são maturadas em tela para ocupar o banco do delator.

Para Dmytryk, o homem sem controle de suas forças, vítima do sistema, como vimos em O Preço de uma Vida (filme que o realizador fez na Inglaterra para criticar a vida americana), dá lugar ao homem que, sob julgamento, pode concretizar o que acredita ser a justiça, com justificativa para seu ato – ainda que manipulado pelo vilão de MacMurray, o que é irônico. Se na personagem de Brando há consciência, na de Johnson há manipulação.

A interpretação de Bogart é comovente. Passamos da fúria à quase compaixão, o que é justificado pelos lábios trêmulos do grande ator, pela exposição da fraqueza, aos poucos, à medida que abusa da autoridade. Percebe, enquanto faz correr pelos dedos suas bolinhas de metal, a própria queda. Sozinho, sem forças, desmascara-se aos olhos de todos.

(The Caine Mutiny, Edward Dmytryk, 1954)

Nota: ★★★★☆

AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

Veja também:
O Beco das Almas Perdidas, de Edmund Goulding

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