Cupido Não Tem Bandeira, de Billy Wilder

Em alguns de seus filmes, entre eles os melhores, Billy Wilder teve à disposição três ou mais atores de peso, como em Pacto de Sangue e Crepúsculo dos Deuses. Em outros, teve um só, como em Cupido Não Tem Bandeira, que funciona e existe graças à presença de James Cagney, uma “caixa de energia explosiva” então com 62 anos, cuja verve e timing “determinaram o ritmo do filme”, como observou Hellmuth Karasek (1998, pp. 447-448).

Ainda assim, nenhum ator – nem o maior de todos, nem alguém com a estatura de Cagney – é suficiente para um filme realizar-se de forma plena. É preciso esperar pelo diretor. Wilder havia acabado de fazer o ótimo Se Meu Apartamento Falasse e apostava em uma nova comédia esperta, politizada, uma sátira com o pé no acelerador, atual à sua época: como no filme anterior, ele e seu parceiro roteirista I.A.L. Diamond desejavam colocar o espectador dentro e fora do cinema ao mesmo tempo, sob o fascínio de uma farsa que não oculta algo palpável, que nos leva a enxergar nosso pior e permite um final feliz.

O efeito corrosivo da vida urbana mesclado ao tempo de Natal confere a Se Meu Apartamento Falasse uma energia borbulhante que falta em Cupido. Nos melhores filmes de Wilder, não enxergamos sua mão: os feitos são tão orgânicos que nos deixamos embebedar. Nos piores, vemos rapidamente que o realizador está ali. Ou o vemos sem muito a fazer. Tem um grande ator e pouco mais que isso para sua empreitada.

A “caixa de energia explosiva” interpreta C.R. MacNamara, representante da Coca-Cola em Berlim, na Alemanha dividida durante os tempos da Guerra Fria. MacNamara quer expandir os negócios para o interior da Europa Oriental, quer levar o produto tipo exportação americano, aqui um refrigerante, para conquistar o outro lado. Três comissários corruptos soviéticos não escondem a sedução pelo produto – que, em tempos passados, já foi uma mulher, ou seja, Ninotchka ou Greta Garbo – e querem negociar com o americano. Para Wilder, não basta a sedução do refrigerante para tecer sua história sobre a vitória do capitalismo: é necessário, sobretudo, ridicularizar o outro lado.

RECEBA NOSSAS ATUALIZAÇÕES: Facebook / Telegram / Letterboxd

O que está em jogo nada tem a ver com a realidade, ainda que pareça: os capitalistas ágeis soam como capitalistas ágeis, os comunistas que falam aos gritos, intelectuais ou beberrões, parecem os comunistas que o cinema americano sempre colocou em seus filmes. O que Wilder e Diamond evocam, a partir da peça de Ferenc Molnár (que sofreu alterações para ser adaptada à época da Guerra Fria) é instituir estereótipos.

Como sabemos, estereótipos também são formas de dominação – sobretudo quando o estereotipado está do lado oprimido. Não é exatamente o caso aqui: os países da Cortina de Ferro, à época, tinham força considerável. Cupido Não Tem Bandeira é soft power revestido como brincadeira, mas repleto de piscadelas ao público, sobre como as coisas funcionam de cada lado do Muro de Berlim (que começou a ser construído durante as filmagens) e como a prosperidade financeira pode parecer lustrosa e até verdadeira.

Porque tudo o que vemos do lado comunista não parece bem. Na verdade, é decadente. Nas idas para o outro lado, vemos prédios destruídos, ruínas e restos da Segunda Guerra, policiais perseguidores (que se vendem por um engradado de Coca-Cola) e, em um bar igualmente decadente, as representações de sempre: os quadros dos líderes soviéticos (o de Khrushchev sobre o de Stálin) e os jogadores de xadrez que não se abalam nem ao som da frenética “Sabre Dance” de Aram Khachaturyan. É nesse momento que Wilder inclina-se a Fellini: da entrada dos homens com a tocha à toda construção da dança, com a orquestra do bar no ponto mais próximo que conseguiu chegar de algo agitado, o cineasta tenta dialogar com um cinema moderno do qual, ao contrário, só o vemos tomar distância.

Segundo Wilder e Diamond, os comunistas não fazem nada além de promover marchas para evocar ideologias. Sabemos o quanto Wilder odeia regimes ditatoriais. E sabemos o quanto as casas com piscina de Los Angeles fizeram-no se estabelecer ali para sempre. Ao voltar para a Europa para fazer filmes, ele deixou-se tomar por rascunhos vazios e sem graça. O maior deles possivelmente é Horst Buchholz, no papel do jovem comunista Piffl.

A desculpa de Wilder para voltar seus mísseis ao outro lado tem a ver com o envolvimento desse jovem comunista com a filha (Pamela Tiffin) de um poderoso executivo da Coca-Cola, vivido por Howard St. John. Quando Scarlett engravida e seu pai prepara-se para ir a Berlim encontrá-la, MacNamara precisa criar uma nova farsa: o protagonista transformará o jovem comunista irritante em um capitalista de terno e gravata, um jovem lorde para o sogro não encontrar defeito. Essa nova farsa, esse flerte com Pigmalião, termina por levar a crítica social de Wilder e Diamond para o outro lado da disputa, talvez de forma involuntária: na impossibilidade de vencer uma batalha, o lado ocidental apela à maquiagem, ao palco, ao espetáculo apelativo que aqui nasce no interior de outro. Outra definição interessante de Karasek: “Lavagem cerebral ao contrário” (1998, p. 445).

De novo, a velocidade: o menino comunista chato pode ser o jovem capitalista chato e boa praça. Na comédia tudo é possível. Quando Buchholz aparece, clamamos para Cagney retornar à cena. Nem Wilder discorda do poder do grande ator perante a velocidade que a história impõe, como deixou claro em entrevista a Cameron Crowe:

Sabíamos que teríamos uma comédia, não iríamos esperar pelas risadas. Mas tivemos que ir com Cagney, porque Cagney era o filme. Ele realmente tinha ritmo e isso era muito bom. Não foi engraçado. Apenas a velocidade era engraçada. A velocidade era muito boa, como Cagney descobriu. A ideia geral era fazer o filme mais rápido do mundo e dar aos atores, para que parecesse rápido, algumas cenas mais lentas também. (1999, p. 165)

Para lembrar seu lugar de origem, MacNamara tem em uma das paredes de seu escritório, pregado, um relógio cuco sem o cuco. É o tradicional transformado, ou corrompido. Ao invés do pássaro, quem avisa o passar das horas é um boneco do Tio Sam. Em outra parede, um mapa, o sinal evidente da estratégia de guerra cujo objetivo era conquistar território a território para, sobre o inimigo, derramar o produto tipo exportação da vez.

(One, Two, Three, Billy Wilder, 1961)

  • Referencial bibliográfico:
  • CHANDLER, Charlotte. Ninguém é perfeito: Billy Wilder – uma biografia pessoal. São Paulo: Editora Landscape, 2003.
  • CROWE, Cameron. Conversations with Wilder. Nova York: Alfred A. Knopf, 1999.
  • KARASEK, Hellmuth. Billy Wilder: e o resto é loucura. São Paulo: DBA Artes Gráficas, 1998.

Nota: ★★★☆☆

AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

Veja também: Fedora, de Billy Wilder

Deixe um comentário