Onde Está a Liberdade?, de Roberto Rossellini

Ao juiz, o protagonista descreve a prisão como um local de felicidade e paz. Na tela, esse espaço dá lugar ao homem do qual aprendemos a gostar rapidamente e à defesa da ideia, sob a crítica social banhada à comédia, de que a verdadeira prisão está do lado de fora, na vida em sociedade, nas aparentes famílias acolhedoras, nos amigos criminosos, nas mulheres que perderam a pureza, em toda corrupção comezinha que não se pode evitar.

Vemos pelos olhos de Salvatore Lojacono, interpretado por ninguém menos que Totò. Onde Está a Liberdade?, comparado a outros filmes de Roberto Rossellini, é menos móvel, não menos voltado ao interior de suas criações humanas, como em trabalhos anteriores. Sem dizer em momento algum, Salvatore tem uma aura religiosa à medida que se assume, sem esforços, um italiano comum, que cometeu um crime passional, “por honra”, e ficou mais de 20 anos no cárcere até alguma autoridade reduzir sua pena e colocá-lo em liberdade.

É um barbeiro que aprendeu a gostar da prisão, de sua rotina, dos amigos que ali fez, que não se reconhece mais na vida em liberdade – nem os locais pelos quais passou, nem a juventude que desfila perante ele. É uma pessoa modesta, com uma mala e nada mais, com o cabelo perfeitamente cortado, alinhado à testa, o que lhe dá a aparência de alguém organizado. Homem que se deixa levar pelas belezas femininas, canta para elas, é vítima de suas mães. Quer recomeçar a vida, toma caminhos que o levam a sentir outra vez a trapaça comum aos outros, até o momento que percebe que o lado de fora da prisão é incorrigível.

O roteiro foi escrito a várias mãos, entre elas as de Rossellini. É comum, entre a crítica, dizer que este é o menos rosselliniano dos filmes do diretor. Sua fábula moral compreende um universo em que os bons são devorados e deglutidos pela sociedade corrupta e que os velhos homens do cárcere civilizaram-se à medida que perderam tudo, aos quais tudo foi negado à exceção de alguns quadrados para respirar. Na prisão, Salvatore não sentiu os efeitos da Segunda Guerra, não assistiu às transformações do mundo e, às portas do novo, duas décadas depois, assiste à vitória da sociedade de consumo, vinda a galope.

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Quase toda a história é contada em flashback. No tribunal, Salvatore tem o tempo do juiz, do promotor e do advogado para explicar – e ressuscitar – todo o imbróglio que envolveu sua saída e, depois, seu retorno. É um estranho caso de fuga ao contrário: o homem sentado no banco dos réus, pela segunda vez, é acusado de ter invadido uma prisão. O juiz fala em “invasão”, o protagonista em “evasão”. Em seu raciocínio simples, faz sentido: se a verdadeira prisão está do lado de fora, é dela que se evadiu.

O filme tem sequências incríveis. Uma delas é a do campeonato de dança. Ao lado de uma mulher mais alta, que acabou de conhecer nas ruas da cidade, Salvatore termina em um clube e faz amizade com os competidores de uma disputa. Eles estão ali há horas, dias, param para descansar apenas alguns minutos e retornam à pista de dança. Uma representação certeira da exploração dos corpos de pessoas que se deixam levar por momentos de aparente felicidade, na competição que se traveste de festa e quase se esconde por completo sob o véu da ilusão.

A cada tentativa de se ver incluído, Salvatore percebe-se mais e mais do lado de fora. Sabemos que a estrutura em flashback pode esconder e exagerar em sua carga cômica: eis a história de um homem contada por ele mesmo. Nesse sentido, assume-se na subjetividade alguma licença poética. Mas, mesmo na comédia, Rossellini continua um crítico social agudo, menos um realizador atrás das fugas engraçadas ou inverossímeis que essa história poderia lhe fornecer. Rossellini é um humanista para uma comédia sobre o sistema de absurdos que criamos e que só pode ser notado por alguém antes apartado.

Não estranha que Onde Está a Liberdade? tenha sido comparado com Europa 51, no qual Ingrid Bergman interpreta uma mulher burguesa que, após a morte do filho, volta seu olhar para os desvalidos sociais e passa a enxergar o universo ao redor em detalhes e complexidades. Quanto mais se põe a ver, mais apartada ela fica. Ao expressar seu desejo de retornar à prisão, Salvatore não está se excluindo ou aceitando a derrota. Ele, como a mulher burguesa convertida, começou a enxergar. Rossellini segue um religioso inteligente cujos aparentes maniqueísmos não nos ferem nunca, nem quando deixa Totò livre para socar a mesa do juiz, para cortejar as damas e ser a personagem que muito bem sabe fazer.

(Dov’è la libertà…?, Roberto Rossellini, 1954)

Nota: ★★★★☆

AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

Veja também: O humanismo de Rossellini

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