Obsessão, de Luchino Visconti

Em artigo na revista Cinema, em 1943, Luchino Visconti diz que “o ator é antes de tudo um homem” e o homem-ator e o homem-personagem, na realização da arte pelas mãos do diretor, podem ser, a certa altura, um só. Isso é latente no Massimo Girotti de Obsessão, o primeiro filme de Visconti: no homem-personagem pulsa o homem-ator, e vice-versa. Essa aparente confusão dá a consistência que a criação necessita.

Na base da obra, o livro de James M. Cain. O material para a fita policial que Visconti rejeita até certa altura, mas do qual não se desfaz por completo. Nem poderia. A base que o serve – como serviu a outros realizadores, antes e depois de Obsessão – não será usada para salientar o desejo que provoca perturbação e leva ao crime, à perdição, o casal ao centro. Mais que isso, Visconti relê Cain para nos contar uma história – uma tragédia – do homem entre o desejo e a liberdade, entre a mulher e outro homem, entre a possível estabilidade e a estrada que o seduz. Na tela, essa busca por liberdade em algum momento supera a busca pelo conforto, pela vida estável, vista em outras adaptações do mesmo livro.

Mesmo tão forte, Clara Calamai torna-se aqui secundária: interessa a Visconti o que sua personagem masculina, nesses tempos de guerra, nessas curvas acidentadas, poderá fazer com si mesma quando cindida. Não estranha que o filme seja cortado por outra história que não existe na de Cain, a do amigo estrangeiro (Elio Marcuzzo) que Gino (Girotti) encontra em uma de suas fugas, em um trem. Quando esse homem paga sua passagem, tornam-se companheiros. Dormem no mesmo quarto de uma pensão, na mesma cama. E Gino respira uma incerteza – uma liberdade – que não pode sentir até o retorno de Giovanna (Calamai).

Essa clara relação homossexual opõe o mundo do homem ao da mulher, a visível relação de confiança e camaradagem à outra, estruturada em medo e culpa. Isso não quer dizer que Visconti tenha feito um filme misógino. O que está em questão é o quanto Gino pode sobreviver em outro papel, ou o quanto pode sobreviver em dois. Gino é um homem dividido para um tempo dividido, em uma Itália próxima à queda de Mussolini e que, com Obsessão, apresenta um cinema distante dos filmes de “telefone branco” da era fascista: nas telas, a rudeza e a brutalidade de Gino confrontam o desejo inexplicável de Giovanna, e esse choque resulta em um assassinato que não dispensa explicações.

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Os amantes matam o marido dela, um insuportável Juan de Landa, porque não suportam mais viver suas próprias vidas. Visconti acena sempre ao seu tempo, à miséria dessas pessoas em cômodos deteriorados, em afazeres mecânicos como consertar veículos, poços d’água ou cortar a carne que será servida aos clientes do restaurante no qual Gino aporta, no início, após dormir na carroceria de um caminhão, como se qualquer lugar lhe servisse.

Ao se deparar com Giovanna, ele sabe o que deve fazer, reconhece seu lugar na trama. O que torna sua fuga – e, posteriormente, sua relação com o estrangeiro – ainda mais interessante: para driblar Cain, Visconti diz-nos que ainda há possibilidade de mudar de rota. Com camiseta cavada e surrada, em sua maneira naturalmente cafajeste, Girotti antecipa Brando em Uma Rua Chamada Pecado, animal em corpo de beldade. À frente, quando bem vestido, de terno alinhado, é livremente falso como uma personagem de Fassbinder.

Giovanna é uma mulher desesperada, que não suporta o toque – nem a presença, nem o cheiro – do marido. A cena em que ela massageia as costas dele enquanto Gino faz a barba à navalha representa todo o atoleiro de Obsessão: a arma no pescoço errado, o prazer físico no homem errado e a mulher em seu papel de serviçal. Matar o marido dela é, para ambos, a maneira de romper a triangulação que mescla o asco ao constante fingimento e na qual nenhuma das peças, no fundo, sabe muito ou o suficiente sobre a outra.

O que os fascistas reprovaram nessa obra-prima de Visconti – entre eles o filho do Duce, Vittorio Mussolini, que teria gritado, na primeira sessão, “Isto não é a Itália!” – não se deve ao fato de ser um filme sobre um casal adúltero que se une para matar um homem, mas, sobretudo, por ser um filme no qual, em algum momento, torcemos para o mesmo casal conseguir escapar. Torcemos pela liberdade. É a inversão típica do filme noir: todos os sinais são dados, todos os fantasmas retornam, e ainda cremos, afundados em nossa participação afetiva, que os dois seres apaixonados podem ter um jeito e uma saída.

A questão também pode ser colocada de outra forma: a humanidade que o filme transborda é transferida à pele dos criminosos, que são pessoas comuns, com sonhos e vacilos, que se debatem até terminarem em uma espécie de delírio, quando Gino e Giovanna veem-se em local isolado, sobre montes de areia, em um completo vazio no qual possuem apenas eles mesmos, um interlúdio no qual o deserto quase nos fornece algum respiro.

Nessa abertura ao neorrealismo, o espaço dos amantes é amargo, um tanto fechado e, ainda que político, não exprime uma luta por causa social. Diferente de outros filmes neorrealistas famosos, aqui o grupo não se sobrepõe ao indivíduo e o erotismo surge como válvula essencial às relações humanas e transformações. Poucos são os filmes neorrealistas nos quais a expressão do desejo – e do erotismo – cumpre seu papel: em Arroz Amargo, o corpo da mulher expõe beleza bruta, no meio rural, e capta a fascinação do bandido, o homem do meio urbano; em Stromboli, vemos o corpo como confronto e ruptura perante uma sociedade atrasada que busca julgar a mulher que, por sua vez, não suporta essa comunidade.

Devido aos sinais anteriores, não parece certo dizer que Visconti inventou o neorrealismo com Obsessão. O filme pode ter nascido das experiências do cineasta quando assistente de direção de Jean Renoir em Toni, na França. O livro de Cain, por sinal, teria sido dado a Visconti pelo próprio Renoir. Ambos, Toni e Obsessão, focalizam histórias a partir de uma matéria bruta – espacial, social – fundida a seres sensíveis, com encenações realistas, permeando pessoas e ambientes verdadeiros, que se chocam com histórias de crimes passionais. Pois o real, dizem Renoir e Visconti, não pode excluir as paixões e, no caso de Obsessão, empurra os amantes ao deserto de suas incertezas.

(Ossessione, Luchino Visconti, 1943)

Nota: ★★★★★⤴

AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

Veja também:
O cinema antropomórfico, por Luchino Visconti

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