Lágrimas de Esperança, de Martin Ritt

A união entre negros e brancos, simbolizada pela sala de aula interracial, logo se revela falsa. Os brancos continuam a ocupar seus lugares. Os negros também: eles frequentam suas igrejas, praticam esportes em seus espaços e, até a cidade de comércios de gente branca, precisam caminhar quilômetros. Estão sempre molhados de suor.

Aos negros será dado um espaço maior que os filmes de “prestígio” até então costumavam dar: somos colocados ao lado deles, de uma família pobre nos anos da Depressão Americana, em Luisiana, desde o início de Lágrimas da Esperança. O diretor Martin Ritt conduz suave não para amenizar o conflito e o racismo, mas para fazer do universo dessa família negra um espaço real, comum, de problemas comuns, de vidas que enfrentam percalços todos os dias, excluídas na terra que habitam.

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A “suavidade” pode até transmitir uma ideia errada, ainda que tenha sua função ao efeito buscado pelo experiente cineasta. Confrontamos alguns “tempos mortos”, o contraste em que a dor não se localizada em um ponto ou outro e se estende a um grupo de pessoas que aprende a conviver à parte, na propriedade do branco, a buscar comida na mercearia do branco, a pedir para o branco o direito de visita em uma cadeia.

A “suavidade” marca o tempo, permite que enxerguemos como poucas vezes no cinema – e talvez seja este o grande feito desse pequeno grande filme esquecido – como é difícil ser “diferente” e normal ao mesmo tempo, ou como é possível que a cor da pele dite o lugar de ocupação de algumas pessoas. A essas mesmas pessoas, por Ritt, é dada a realidade diária da vida em família, entre pais, filhos e um cão simpático que os segue.

São membros de uma família que persevera: o pai, Nathan Lee (Paul Winfield), depois de fracassar na caçada a um guaxinim, à noite, na floresta, rouba um pedaço de carne para matar a fome da família e termina preso; a mãe, Rebecca (Cicely Tyson), chamada por Pauline Kael de “a primeira grande heroína negra na tela”, precisa tomar as rédeas da família, trabalhar no campo, plantar e colher na ausência do marido; e os filhos, encabeçados pelo mais velho, o verdadeiro protagonista, David Lee (Kevin Hooks).

Com o pai preso, a harmonia é quebrada. Não apenas porque o homem não está. Outro elemento desaparece, por um tempo, no momento que ele é levado pelos policiais. O cão que dá nome ao filme, Sounder, é atingido por um tiro, machuca-se, embrenha-se na mata e some por semanas, talvez meses. David Lee chama, em vão, o animal. A mãe diz que ele vai voltar. O menino aguarda. Como miragem, tempos depois, o cão ressurge machucado mas vivo.

Sounder sinaliza a nós a fidelidade encontrada apenas no animal. O homem branco é quem tenta abatê-lo. Faz sentido que sobreviva, e faz sentido que retorne para, na companhia de David Lee, empreender uma caminhada de dias, quilômetros de estrada, até a prisão rural na qual Nathan estaria preso, segundo informações obtidas por uma mulher branca amiga da família (os policiais, “amparados” por lei, negam-se a passar informações aos negros).

A fidelidade canina acompanha o garoto. A viagem só não é frustrada porque na bagagem ele retorna com mais do que informações do pai. Na verdade, não o encontra. Em seu caminho, uma escola só para crianças negras, com uma professora negra e, na cabeça do pequeno David Lee, o germe que alimenta revoluções, mesmo as silenciosas: é preciso entender o seu lugar, ler a sua história, se deixar educar por aqueles que o compreendem.

Sobre o filme de Ritt, na Folha de S. Paulo, em 1973, Orlando Fassoni observou que “somos irresistivelmente arrebatados pelas imagens tranquilas, pela composição serena, pelos bucólicos cenários da Luisiana e pela harmonia das interpretações comoventes de um elenco que valoriza cada minuto desse drama”, (…) “uma pequena ode aos desesperados”.

Nos espaços em que o filme é ambientado, sob a ótica de Ritt, são os brancos que passam a estranhos, deslocados, senhores frios apegados às leis que criaram. Não são vilões. São retratos fiéis de um problema maior, algo como uma doença que corre viva ao fundo, nos mesmos espaços destacados por Fassoni, na já citada falsa “suavidade”.

A grandeza de Lágrimas de Esperança está justamente na negação de um discurso político fácil. Não será simples aos mais jovens, que cresceram na cultura do contra-ataque a qualquer sinal de racismo. Não estão errados. É compreensível. Ver os negros em cena conquistar uma informação valiosa graças a uma mulher branca pode ser imperdoável.

Ritt, a partir do roteiro de Lonne Elder III, adaptado do livro de William H. Armstrong, explora na tela o heroísmo que a simples e pura resistência pode conter, a da família que escolheu ficar no mesmo lugar, a do filho que decidiu aprender mais com as histórias contidas nos livros que trouxe na bagagem, na escola em que encontra seu lugar.

(Sounder, Martin Ritt, 1972)

Nota: ★★★★☆

AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

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