Bunny Lake Desapareceu, de Otto Preminger

A mãe não conhece ninguém e, com exceção do irmão, ninguém a conhece. Recém-chegada à Inglaterra, circula confusa, desesperada, como se nunca precisasse se explicar. É assim até a parte final de Bunny Lake Desapareceu, de Otto Preminger: nem o irmão, vivido por Keir Dullea, nem o policial, por Laurence Olivier, podem resolver um mistério que passa pelo protagonismo dessa mulher, interpretada por Carol Lynley.

Só teremos certeza de sua potência ou, mais ainda, de sua posição, quando a história sofre uma reviravolta (para alguns, esperada). Do instinto materno nós nunca duvidamos. Nem da relação complicada com o irmão, que a ama e não suporta a ideia de que ela foi de outro homem. Até certa altura, o que importa é a existência ou não da criança, e como essa existência é fundamental para a personagem Ann Lake (Lynley).

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A mãe deixa a filha na escola para seu primeiro dia de aula. Bunny tem 4 anos. Não vemos a criança. Apenas uma porta se fecha. Outras funcionárias da escola, incluindo a cozinheira com quem Ann conversa, também não viram a criança. Desde o início, sua existência é posta em dúvida e o que está em jogo, sempre, é a mãe.

Não demora nada para que chamem a polícia e a escola, com várias professoras e cuidadoras, entre elas uma senhora simpática que ocupa um dos aposentos mais altos, lúcida como poucos, é colocada sob suspeita. O irmão tampouco é confiável. A polícia é personificada pela razão, pelas perguntas e expressão não raro cansada de um Olivier que, de partida, conduz-nos ao falso ponto central. Ele não é o protagonista.

O filme é mais sobre um jogo psicológico e sobre como algumas personagens precisam saber jogá-lo para vencerem ao fim do que sobre um sequestro, é mais sobre o interior corroído dos recém-chegados contra alguma luz que emerge dos experimentados na vida local, em suas pequenas casas, em seus vícios particulares, em sua suposta organização de escolas e hospitais, em pubs invadidos pela nova música da Swinging London.

Em boa parte do filme desviamos do ponto central. Faz parte do jogo. Preminger, bom artesão de imagens, construtor de ambientes fechados e apavorantes como uma loja de bonecas aberta à noite para a mãe desesperada tentar encontrar o brinquedo da filha, conecta-nos primeiro às necessidades de preenchimento de um casal, irmã e irmão, o que nos faz pensar que criança alguma possa existir.

Na tentativa de enxergarmos o interior dessas pessoas, a começar por Ann, vemos apenas o movimento e o cinema. Como se Preminger estipulasse um caminho tortuoso baseado primeiro em imagens-ação, o que explica as andanças de Ann pelos espaços atrás da filha, pelo vazio de corredores e cômodos, pelo aspecto que assume a já citada loja de bonecas e depois o hospital, fazendo de Bunny Lake quase um filme de terror.

Não há saída, diz Preminger, a partir do livro de Marryam Modell. Nem quando o filme termina. Não há qualquer alívio aos que se deixam ver apenas quando precisam assumir um papel para sobreviver. O drama de Ann é não se fazer acreditar quando diz ser mãe, quando afirma ter perdido a filha, e precisar ser outra – a criança atenciosa – quando há vidas em risco, inclusive a sua. Em seu caminho estão espaços de enclausuramento da chamada sociedade disciplinar, como apontou Foucault: a escola, a delegacia e o hospital. Desacreditada, mais tarde presa, a mãe terá que encontrar meios para escapar.

Para o irmão, Ann terá de se posicionar como a irmã pequena, obediente, a menina que se recusa a crescer perante aquele que não suporta saber que ela cresceu pelas mãos de outro homem. Steven (Dullea) traveste-se de jornalista sofisticado, em carro conversível e veloz, e termina nu em uma de suas brincadeiras, a servir de cabra-cega.

Preminger esmiúça as fraquezas desses seres perfilados como máscaras e faz dos excêntricos as figuras realmente verdadeiras – como o vizinho pervertido interpretado por Noël Coward, como a professora idosa na pele de ninguém menos que Martita Hunt, a atriz que incorporou uma inesquecível Miss Havisham em Grandes Esperanças, de David Lean.

Não seria exagero especular que Preminger escolheu Hunt pensando em sua Havisham. A nós, isso só faz aumentar a ligação entre o mundo infantil, da personagem dickensiana, e a senhora que ouve gravações de crianças para escrever livros, quase esquecida em um cômodo superior, mas capaz de perceber algo mais. Adulta que se permite ver o mundo pelo ponto de vista da criança, porque se tornou especialista nela.

O filme propõe uma mescla entre seres de diferentes tempos e causa espanto, pela ousadia de Preminger, quando se volta à televisão cujo canal é trocado no momento em que o telejornal ia comunicar o desaparecimento de Bunny, passando para outro canal com uma apresentação da banda The Zombies. As personagens centrais ficam desapontadas, as demais não viram coisa alguma. Ao mesmo tempo em que a realidade impõe-se, nada há de aleatório: eis uma amostra de que não há encaixes perfeitos na vida real; eis o tempo dilatado, os longos segundos em que a câmera está presa à televisão, o cinema moderno.

Preminger obriga-nos a confrontar primeiro o tempo ao qual nos habituamos e, depois, a ver o verdadeiro tempo, o tempo do nada, da espera, o tempo que recobre o elemento aparentemente banal. Com Bunny Lake, o diretor abre-se definitivamente ao novo. Seu filme carrega a espera, é um thriller psicológico no qual duvidamos do que parece óbvio em nossa insistência em permanecer do lado adulto, centrado, nos domínios e na segurança de alguém como Olivier, que não pode ser enganado.

(Bunny Lake Is Missing, Otto Preminger, 1965)

Nota: ★★★★★

AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

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