A Noite do Iguana, de John Huston

Antes de soltar o iguana preso a um barbante e enfim encontrar um pouco de paz de espírito, o protagonista de Richard Burton confronta todos em seu caminho: a ninfeta (Sue Lyon) que insiste em saltar no seu colo, a solteirona incumbida de cuidar da moça (Grayson Hall), seu assistente (Skip Ward), uma viúva dona de hotel (Ava Gardner) e uma pintora recatada (Deborah Kerr) que viaja na companhia do avô (Cyril Delevanti), um poeta.

Os diálogos cortantes ocupam essas relações curtas. As pessoas aglutinam-se ao redor do padre Lawrence Shannon (Burton), que, depois de expulsar os fiéis de sua igreja e ser expulso por eles após se relacionar com uma ovelha do rebanho, termina como guia turístico no México paradisíaco, perfeito para alguns esconderem-se – ele incluso.

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Aí reside uma questão curiosa envolvendo as incursões de John Huston pelo México: o espaço sempre será o da fuga, o ambiente para se perder, como em O Tesouro de Sierra Madre e À Sombra do Vulcão, e como este A Noite do Iguana. O que faz o padre enredado por seus demônios, dispostos a metralhar tudo e a todos com palavras quando se percebe humano demais para o peso da batina? Corre para longe de seu meio.

Sequer temos tempo para conhecer o México em questão: eis apenas um espaço, um rastro, para se exorcizar um homem, para se resolver uma crise interna; eis uma metástase em progresso e, tão longe como imaginamos, sua regressão, a volta ao humano no domínio de suas forças. O México no qual ele plantará raízes só resta imaginar.

O espaço do padre resumia-se até então à igreja que servia aos seus sermões, na qual, em bela abertura, investe contra a comunidade que acompanha suas palavras. O púlpito, visto de baixo para cima, assemelha-se a uma máquina prestes a prensá-lo. Vemos sua estrutura, suas linhas, e torcemos para o padre – perto de explodir – mudar de local.

Ele, descobrimos mais tarde, sucumbiu ao desejo. Tocou uma moça que o visitava. A comunidade descobriu o caso. Escândalo. No dia chuvoso em que corre a abertura, ele resolve atacar as pessoas que o julgam com o olhar, que, à medida que o tom de seu desespero aumenta, trocam palavras baixas, cochicham ao pé do ouvido.

Passam os créditos e estamos no México. O padre veste outro figurino, aguarda as mulheres que guia em uma das paradas. É seguido pela ninfeta, que o atormenta, também pela cuidadora dela – que muitos enxergam como lésbica (e possivelmente seja). No ônibus, ele e as mulheres observam os nativos com iguanas nas mãos, sob o sol escaldante. O gosto do bicho, diz ele, é semelhante ao do frango. O clima de acidente é cada vez maior; cada minuto conta, cada palavra tem seu próprio peso – indica a psicopatologia de quem a elenca.

Ao ser acusado de assediar a ninfeta durante essa viagem, Shannon toma o volante do ônibus e leva suas clientes e seu assistente ao hotel à beira-mar, no alto de um morro, administrado pela bela Maxine Faulk (Gardner). Nem ele nem os dois beach boys mexicanos que a circundam serão capazes de saciá-la. Em cena ousada, ela beija ambos enquanto se banha na praia, à noite, e em seguida os dispensa para caminhar sozinha.

O contraponto é a pintora, que desperta estranha reações no padre e conta as duas únicas experiências sexuais – ou quase sexuais – que viveu. Na companhia do avô poeta, Hannah Jelkes (Kerr) pinta pessoas, não tem casa e se dedica, ao cuidar do velho homem, a permitir que ele consiga completar um poema e morrer em paz.

O homem que fracassou em seu casamento com a Igreja está preso à teia de diferentes mulheres, das menos às mais experientes e àquelas que impuseram um claustro a si mesmas a despeito da vida mundana. A flertar com a insanidade, ele termina amarrado a uma rede, preso, obrigado a encarar a dona do hotel e a pintora, e elas precisam acalmar seus nervos.

A luta dele contra a hipocrisia, ao lado de estratos de uma civilização que tenta não sucumbir aos desejos e à natureza das coisas, move um filme curioso, um John Huston psicológico e não incomum, mas certamente menos físico quando pensamos em outras de suas empreitadas. Seu roteiro, escrito com Anthony Veiller, é baseado em uma peça de Tennessee Williams, autor caro para o cinema americano dos anos 1950.

Huston conta com a fotografia magistral de Gabriel Figueroa, que consegue transmitir o aspecto fechado dessa história, sua aura delirante, a de um homem rendido que caminha sobre cacos de vidro, sem nos privar de espaços verdadeiros. Em cena, o ponto final de uma jornada e o início de outra; outra vez, Huston mira as nossas derrotas.

(The Night of the Iguana, John Huston, 1964)

Nota: ★★★☆☆

AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

Veja também: O Pecado de Todos Nós, de John Huston

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