A esposa não quer ter um filho com o marido distante, infiel, indiferente a suas dores, e por isso escolhe abortar; a amante quer ter seu filho apesar do companheiro, de seu mau-caratismo evidente. Quem observa as dores dessas mulheres – mais da primeira, menos da segunda – é o pai do homem que causou os problemas.
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A ele, o centro da família, resta perceber a distância entre sua vida e a dos filhos, trajetórias que, a nossos olhos apressados, talvez não tenham dado certo. O pai é parte inseparável desses conflitos em O Som da Montanha, ele próprio dono de um passado infeliz. Mikio Naruse arrebata-nos ao ligar todos esses dramas, essas pessoas.
Como em seus outros filmes, sempre fica a impressão do equilíbrio possível. De que a vida continua apesar de todos os rompimentos, de que o cotidiano – marcado por inúmeras elipses, pelo clima de calmaria – desfaz-se pouco a pouco sem que as personagens consigam se comunicar com exatidão, dizer o que pensam, o que desejam.
Também a exemplo de outros dramas de Naruse, a família faz-se por chegadas e partidas, em corredores que reproduzem a ideia da passagem, do tempo, como é determinado na abertura: o pai caminha por uma ruela ao lado da nora e percebe a beleza do girassol para além do muro, beleza próxima e distante ao mesmo tempo.
Shingo Ogata (Sô Yamamura) diz que seria bom se o homem pudesse tirar seu cérebro para que fosse purificado, que por algumas semanas se mantivesse apagado, sem sonhos e sem vida, à espera do órgão renovado. A nora, Kikuko (Setsuko Hara), acha a observação engraçada. Naruse expõe algo amargo por trás de diálogo passageiro.
O homem mais velho é o único que entende a nora. O Som da Montanha é, primeiro, sobre uma família que finge equilíbrio; depois, sobre o amor desse homem por essa mulher, esse encontro de gerações, tentativa de restabelecer algo perdido: ele casou-se com a mulher que não amava; a nora sofre calada em casamento que não deu certo.
Esses espíritos solitários entendem-se sem esforço, declaram suas dores – desejos profundos – sem muito dizer. Pela aparente segurança dele, pela nítida intranquilidade dela, sua incomunicabilidade, seus sorrisos com esforço, seu olhar de esperança, ainda assim. Em momentos, mais parece a criada da casa, sempre a servir os sogros.
Do livro famoso de Yasunari Kawabata, o filme pode ser entendido também como um drama de pessoas da cidade que retornam para suas casas de aspecto antigo, de um velho Japão, passagem entre dois países e estilos de vida em um só universo. Isso permite entender por que o pai fica tanto em casa, por que o filho demora tanto para voltar.
O filho, Shuichi (Ken Uehara), descobriu sua amante na cidade, como era de se esperar. Encontra-se com ela na companhia de outra mulher, a secretária do pai. Ao ficar sabendo que Shuichi tem uma amante, o pai não o condena de pronto, tampouco o compreende. Fica entre o mundo do homem – com supostas necessidades de fuga pela cidade quadriculada – e o da nora, da mulher de família, servil, à espera daquele que não a ama.
Por algum tempo, Naruse leva-nos a ver tudo, ou a tudo imaginar, pelos olhos do pai. Pela secretária, descobrimos o comportamento do filho para fora de casa e do escritório; como o pai, somos levados a imaginar esses momentos e, de novo como ele, a invadir os espaços da casa da amante, aquela vida segunda, não menos importante.
A narrativa prende-nos ao velho homem sem que possibilite condenar o amor que sente pela nora. Quer, inconscientemente, corrigir erros do passado – os seus, os do filho. A perturbação da família dá sinais em O Som da Montanha, como no gesto da neta, que não quer entrar na casa, como na tempestade que faz cair a energia. Tão próximas, as personagens observam-se e, sem dizer, constatam seus fracassos.
(Yama no oto, Mikio Naruse, 1954)
Nota: ★★★★☆
Veja também:
Relâmpago, de Mikio Naruse