Hong Sang-soo: em deslocamento

O protagonista de Mulher na Praia é um cineasta. Nesse filme de Hong Sang-soo lançado em 2006, ele viaja para escrever o que pode ser o esboço de um roteiro: menos que palavras encadeadas, ideias perfeitamente expostas, o que ele precisa é de um ponto de partida, o “fio da história”.

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A esse fio ele pretende se ligar. Encontrá-lo, sabe qualquer escritor, é a parte mais complicada da criação. É desse encontro, no fundo, que trata o mágico filme de Sang-soo, autor discreto – nem por isso menor – do cinema moderno. Como poucos, parece estar fazendo sempre o mesmo filme.

Seu essencial passa justamente por esse “fio da história”: para criadores como ele, ligados à concisão, menos ao arremate, é preciso apenas uma brecha. O que vem depois é uma obra sem fechamento, experiência de continuidade, histórias sobre vidas que seguem como foram e, sem surpresa, um fim sem necessariamente uma conclusão.

É a impressão que deixa este Mulher na Praia: começa com dois homens em um apartamento, termina com uma mulher em seu carro, na praia, rumo a lugar algum, ao indefinido. Começa com a certeza, a solidificação, o peso de dois homens que deixam ver tudo; fecha-se em leveza, com a mulher.

Em seus filmes, os homens estão entregues, delineados, as mulheres não. É como se, no terreno de seu próprio sexo, o cineasta não negasse acesso à sua natureza: sabe dos homens, de suas conversas, afazeres, infantilidades. Pouco, ou o essencial, sabe sobre as mulheres, sexo distante e misterioso.

Em Mulher na Praia, o homem ao centro, o cineasta, não sabe como lidar com elas. Antes, em A Mulher é o Futuro do Homem (título que expressa à perfeição a maneira como o criador vê o sexo oposto), dois amigos que se envolveram com a mesma mulher resolvem reencontrá-la após anos. A união do trio dá lugar às lembranças.

Sang-soo permite possibilidades, diferentes “fios”: comum, em seus filmes, o retorno à mesma história, às mesmas peças, mas com possíveis mudanças no curso dos acontecimentos. Ao expor um caminho diferente, dá-nos a possibilidade de escolha.

Mais ainda: expande-nos a beleza de um universo que não se contenta com o fechamento, ao mesmo tempo ciente da nossa capacidade de captar novas trilhas sobre as quais – a despeito de tantas semelhanças – ainda é possível se lançar. Em resumo, Sang-soo questiona as possibilidades narrativas.

Nenhum de seus filmes expressa esse desejo tão bem quanto A Virgem Desnudada Por Seus Celibatários, pequena obra-prima que, desde o título, faz pensar outra vez na questão feminina. O cinema do diretor coreano retornará com constância à observação da mulher, seu mistério, também sua distância e até seu sofrimento.

Em A Virgem Desnudada, o público encontra o que pode ser uma história dividida em dois caminhos: ao avançar ao segundo ato, a história retorna ao ponto de partida e, pouco a pouco, leva a pedaços antes ocultos. Fatiada, expõe contornos narrativos, caminhos de um cinema que espelha a vida em toda sua confusão.

Por outro lado, talvez o segundo ato de A Virgem Desnudada seja nada mais que uma nova história, outra trilha que ainda guarda semelhanças com a anterior. Em ambas, uma garota envolve-se com um homem que financia um cineasta (de novo), e o filme todo se sustenta na difícil relação do trio.

Se nesse caso o diretor permite enxergar a mesma história – ou duas diferentes – pelos pontos de vista do homem e da mulher, o mesmo não se pode dizer do ótimo A Mulher é o Futuro do Homem. Por aqui, ela pode ser vítima, ou o contrário: sua força reside justamente nos espaços íntimos, os quais a câmera sabiamente flagra com frieza.

A mulher, por exemplo, pede que o namorado limpe-a enquanto fazem sexo. Ela diz ter sido estuprada por outro rapaz (o que não sabemos se é verdade), e espera que apenas o amor do outro, o titular, possa purificá-la. O ato, por sua vez, é baseado na pele, na imagem direta, sem floreio.

Em seguida, ela envolve-se com o amigo do namorado quando este viaja para os Estados Unidos. A relação, de novo, baseia-se mais no físico, menos no sentimental. E não se duvida que a moça possa amar um ou outro, ou os dois. Trata-se, sim, de um cinema que nega a dramaticidade em excesso.

Sang-soo deixa o mistério flutuar no espaço entre câmera e personagem, sem penetrar demais, sem sair por inteiro. Como Robert Bresson, por exemplo, o que liga é também o que afasta, o que capta a dor também deixa ver algo belo, como se a natureza humana, a dos pequenos gestos, desse conta de exemplificar a grandeza dos casos em evidência.

Pequenos sinais ocupam o fundo, sinalizam uma história, e as personagens às vezes percebem essas pessoas. Em A Mulher é o Futuro do Homem, uma mulher de lenço deixa um restaurante e, do lado de fora, do outro lado da rua, é seguida pelo olhar dos homens que estão no interior do mesmo comércio, à mesa.

Figura pequena, para não retornar, um pouco como o mendigo de Hahaha, comédia que Sang-soo lançou em 2010: de um restaurante, ao lado da janela de vidro, dois casais observam um mendigo distante, ao lado de alguns barcos. Os homens, de lados opostos da mesa, discutem sobre essa vida perdida, da qual nada sabem.

Um deles diz que é necessário ver para além da capa que recobre aquela figura, ou para além do papel ao qual as pessoas estão acostumadas a lançá-la: a vítima à deriva. Pouco depois, quando um dos casais aproxima-se desse mesmo homem, o mesmo se revela monstruoso, a personagem esperada, para nossa surpresa.

Comum, nesse cinema, o diálogo entre casais ou amigos à mesa. Sang-soo recusa a alteração típica entre plano e contraplano e prefere o plano médio ou o primeiro plano, com pessoas de perfil. O que nos possibilita, no mesmo enquadramento, ver o que eles veem a partir da janela, como em cenas ambientadas em restaurantes.

Ora ou outra, Sang-soo opta pelo uso do zoom, nem sempre com discrição. Ao contrário, não precisa esconder esse movimento forjado pela lente, tampouco perde a leveza ao utilizá-lo. É como se a câmera fosse não mais que um olhar passageiro, desajeitado, talvez o de um cinegrafista ao lado.

Esses filmes, no fundo, não escondem nada em relação à forma: o cinema de Sang-soo é o do plano, não o da montagem; é, sobretudo, o da naturalidade. O que explica a aceitação da falsidade, da encenação livre, do jogo que soa improvisado.

Como não lembrar, por exemplo, dos homens constrangidos, no encerramento de Mulher na Praia, quando ajudam a garota a desatolar seu veículo? Ou o momento em que uma das personagens de Hahaha abandona os alunos de repente, para logo em seguida ser abordada pelo companheiro?

Nos dois casos, o diretor resolve as sequências sem o uso da montagem. Permite que tudo se desenrole em um mesmo plano. Se em algum momento a encenação é revelada, a justificativa recai sobre a recusa de aderir ao corte, ou seja, outro tipo de falsidade (a qual o espectador tem mais dificuldade para enxergar).

Mesmo infantis, moldados à leveza da comédia (mesmo quando o realizador faz drama), os filmes de Sang-soo podem ser os mais verdadeiros. Sua matéria-prima é conhecida: homens e mulheres em relações amorosas, destinados a se encontrar, às coincidências.

Bastam dois ou três filmes do diretor coreano para que o espectador saiba quem são as personagens dos filmes seguintes: poetas, cineastas, homens em busca de alguma aventura ou novo amor, à contramão de mulheres realistas, maduras, capazes de interpretar para desmascarar o outro. Mas nenhum deles terá acesso a tudo. Em alguns casos, nem mesmo o narrador, ou, como em Hahaha, os narradores.

Nessa comédia de 2010, dois amigos encontram-se em um restaurante pouco antes de um deles viajar para o Canadá. Ambos contam suas histórias. Ora um, ora outro. Não demora para percebermos as histórias cruzadas, e que algumas personagens são comuns a ambas. Assumimos então o lugar privilegiado, ao passo que os narradores continuam presos às suas supostas certezas, vidas de alegria.

Título estranho mas certeiro: indica o sorriso, a celebração, não a comédia para gargalhar. E talvez não haja nesse cinema indicativo maior de falsidade do que tal título: é sobre a gargalhada dos outros, não a do espectador. A este, resta observar como as peças movem-se, como essas vidas não podem se tocar por completo para que a mágica possa existir. Mais que o encontro, depende-se de seu oposto.

Diz um personagem de Hahaha: “Quanto menos você sabe mais você vê”. Pode estar falando, claro, desse cinema, e não estranha que a frase seja dita por um cineasta. É necessário saber pouco ou quase nada sobre essas pessoas para ver mais, para procurar o que há por baixo de inegável mistério, de inúmeras perguntas.

Deslocamento

O cinema de Hong Sang-soo é o do deslocamento. O campo será explorado pelo movimento panorâmico, também pelo afastamento ou recuo. Casam-se a essa forma as histórias de seres que retornam, que se preparam para mudar, gente que depende da bebedeira para dizer algo mais. A presença dos bares explica muito. Nesses ambientes, as personagens invadem ou fogem do campo.

O Dia em que Ele Chegar, uma das pequenas pérolas de Sang-soo, exemplifica bem essa dificuldade de encontrar um lugar no mundo, uma casa, o estado que permite ver a configuração da “família tradicional”. Como o francês Éric Rohmer, o coreano tem atração por personagens desterradas, aventureiras, atingidas pelo acaso.

Outra vez, como costume, o deslocado é o cineasta, o professor de cinema – por isso, o artista desiludido. Alguém que precisa do choque, no belo preto e branco que ajuda a compor o clima frio. Após beber com alguns jovens estudantes de cinema, o professor é hostil aos rapazes e termina na casa de um velho caso de amor.

O choque é reproduzido sempre pela incerteza e, mais uma vez a beber na fonte de Rohmer, pelo destino que se fantasia de acaso. Ou seria o contrário? As personagens de Sang-soo falam de histórias, ou sobre como contá-las. O poder da narrativa é revelado pela voz de suas criações.

Em O Dia em que Ele Chegar, um ator explica uma “teoria dos extremos” a dois amigos na mesa do bar. Segundo ele, definir alguém elevando suas características ao extremo faz com que o outro aceite tal descrição.

Outro exemplo interessante do mergulho na arte de contar histórias – e exemplificar o que esse cinema propõe – pode ser visto em Mulher na Praia, no momento em que o protagonista, um cineasta, revela a ideia de um roteiro, uma história que trata de coincidência e na qual a personagem procura por fatos que talvez liguem todos as pontas soltas de seu universo, para assim explicar o que a rodeia.

À contramão, Sang-soo brinda o público, não poucas vezes, com a ausência de explicações: os humanos são como são, diversos, arredios ou propensos ao dramalhão que, à câmera, converte-se em comédia. Seres que podem retornar ao apartamento da mulher amada, no meio da noite, para chorar em seu colo, repassar o que viveram.

Personagens como a namorada de Você e os Seus, de 2016, vivem para nos confirmar as dúvidas que cercam o protagonista, que, como a câmera, não pode acreditar por completo na mulher, nem deixar de amá-la. Homem comparado ao protagonista de Esse Obscuro Objeto de Desejo, de Luis Buñuel, a quem a lente não oferece alívio.

Ao contrário, a câmera (e o público) continua a perguntar quem é essa mulher, ou quem são essas mulheres que surgem em cena. A moça delicada nega ter estado em um bar, certa noite. O companheiro não acredita, termina a relação e depois se vê, mais de um dia, em direção à casa dela, para tentar retornar.

Relação de dependência, à medida que a personagem feminina conhece e se encontra com outros homens, e a cada um diz não ser a pessoa esperada. Todos a conhecem, e ela insiste que não conhece nenhum deles. Uma personagem que não quer ser, que se reinventa a cada segundo: típica deslocada de Sang-soo.

As imagens traem. Até as imagens que não podem ser vistas. Em Mulher na Praia, o cineasta diz não suportar o fato de sua amante ter se entregado a um estrangeiro. Alega dificuldades para viver com essa imagem na cabeça. Em O Dia em que Ele Chegar, uma das personagens afirma não conseguir ler tão bem as pessoas. É da leitura impossível – ou das várias narrativas possíveis – que trata o grande diretor coreano.

Incapazes de revelar tudo, ou o suficiente, as imagens de O Filme de Oki, de 2010, estão ligadas à dúvida. Fica, outra vez, o filme dentro do filme. Surgem problemas, não conseguimos ver todas as camadas que suscita, a intensidade reverbera questões: o que é cinema? O que é vida? É possível que ambos estejam ligados?

Como em todos os filmes do realizador sul-coreano, não se sabe muito sobre as personagens. Estão de passagem, são viajantes, realizadores de cinema, artistas que precisam do filme para corrigirem o que deu errado em suas próprias vidas, repetirem a história imperfeita, moldes do autor a cada nova linha narrativa.

A intensidade em momentos é calada: sobra a composição leve de personagens quase sempre sem pais ou filhos, solteiras, estudantes, solitárias em um mundo que não oferece raízes. Ao refletir a vida, ou tentar, o cinema toca o indeterminado, o humano. Por consequência, o que vem depois pode ser uma comédia de erros, pura desilusão.

“Meu filme é parecido com o processo de conhecer pessoas. Você conhece alguém, tem uma impressão, e faz um julgamento a partir disso. Mas, amanhã, você pode descobrir coisas novas. Espero que meu filme possa ser similar em complexidade a um ser vivo”, diz o cineasta, em palestra, no primeiro episódio de O Filme de Oki.

O cineasta é o próprio Sang-soo, claro. Cinema sobre o processo do cinema, a arte da narrativa, sobre traçar caminhos entrecortando a grande massa da história. Amarrar fios enquanto o autor permite que outros fiquem desencapados. É o que confere algo único a suas obras: há sempre brechas, mistérios, deslocamentos inconclusos.

O Filme de Oki possui quatro histórias. A última leva o nome do filme, o que torna possível supor que as três anteriores são a fonte de preparação ao cinema, ao verdadeiro “filme dentro do filme”, o da personagem Oki, interpretada por Jung Yu-mi.

O que se tem como “preparação”, revela Sang-soo, é mais próximo à vida real. É o desacerto, o tropeço, outros filmes por outros olhares, de outras personagens. Se o filme é de Oki, natural que termine nela, na história sobre a mesma moça e seus dois passeios, com dois homens diferentes, um mais velho, outro mais novo.

Na já citada palestra, Oki faz uma observação para, de novo, confundir vida e cinema: “Seu filme é sobre você. E nós pagamos para vê-lo”. Até que ponto as pessoas podem usar suas vidas como matéria de base para a arte que produzem? A um realizador intimista como Sang-soo haveria outro matéria que não fosse sua vida?

Em Na Praia à Noite Sozinha, a protagonista é uma atriz sem as rédeas de sua própria história – ou de suas histórias. Dorme à beira da praia – onde teria passado a noite sozinha – para despertar duas vezes: ao lado de uma equipe de filmagem, que logo a leva até o cineasta; e com uma voz que a acorda, para que ela vá embora.

É um dos filmes mais dramáticos de Sang-soo. Expõe a ausência do cinema dentro do cinema, da possibilidade de se fazer ficção outra vez para corrigir imperfeições, ou apenas para dar controle àqueles que o perderam.

Nesse sentido, a atriz Young-hee (Kim Min-hee) equivale – em deslocamento, em realidade, em prisão à vida real, distante do cinema – ao cineasta do primeiro episódio de O Filme de Oki. A diferença é que não há o filme do desfecho, o capítulo que possibilita o controle. Ao contrário, descontrole, mal-estar.

A jornada de Young-hee começa em outro país, com outra língua, onde percorre ambientes frios até ser raptada, ou amada, ou levada aos braços como objeto, por um homem estranho. Uma das situações que Sang-soo não pretende explicar, à medida que a personagem cada vez mais parece não ter domínio de si mesma.

Enquanto passeia com uma amiga, ela resolve se curvar no chão, a poucos metros de uma ponte. Visualmente, o limite de suas costas dobradas toca o limite da curva da ponte. Percebemos que a simetria não é fruto do acaso, mas de cálculo.

A moça retorna aos amigos, aos bares, aos encontros passageiros, à praia para sonhar com algum novo desfecho e acordar com o horizonte, caminhar a ele. Clama pelo amor que não pode usufruir, sem alguém para lhe completar. A casais de amigos, diz algo forte: “Se estão satisfeitos com essa vida então não estão aptos a amar”.

Seus diálogos vão rapidamente da alegria à fúria, mesclam dissabor ao amor em saltos abruptos, situações que deixam os outros assustados, em conversas de bar comuns ao diretor sul-coreano. A atriz sobe o tom. Como a outras personagens de Sang-soo, para ela não há um fim; é condenada ao movimento, ao encerramento aberto, confrontada por questões difíceis de responder – no cinema ou na vida.

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Foto do cabeçalho: Hong Sang-soo (crédito: Sandro Baebler)
Foto 1: A Mulher é o Futuro do Homem
Foto 2: O Dia em que Ele Chegar
Foto 3: Na Praia à Noite Sozinha

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