O cinema clássico americano carrega a ideia de que os inocentes e puros devem triunfar ao fim. De que, mesmo infiltrados, a praticar algo ilícito como exceção, os mesmos inocentes são justificados, a serviço de causa maior. Nessa jornada, o contraponto será igualmente marcado: explode em maldade, mistério e, por que não?, sedução.

O inocente tende a ser assexuado, ao contrário do vilão exibido, entregue, ora ou outra sob o figurino de corte impecável. Não estranha, portanto, que a protagonista de Pavor nos Bastidores tente e não consiga se fantasiar de outra. Os óculos da fantasia cegam; ela, interpretada na medida por Jane Wyman, tem como escudo apenas sua essência.
Ao público, é o que basta. No suspense, é aquela peça antiga, tantas vezes usada por Alfred Hitchcock, sobretudo na fase britânica: o inocente que termina laçado ao centro de um jogo cujas forças escapam-lhe. Em Pavor nos Bastidores, a jovem atriz Eve (Wyman) – justamente uma atriz! – acredita estar apaixonada por um rapaz envolvido em uma trama de assassinato, vítima de sua amante malvada, atriz famosa.
Em carro em alta velocidade, no início, pelo trânsito de Londres, ele (Richard Todd), conta-lhe o caso. O filme volta às suas memórias, às criações, e oferece de bandeja ao espectador não exatamente o que ele deseja que a moça pense dele, mas o que a ela, tão ingênua, será dada a aceitar por sua própria natureza. Acreditará no que ele diz.
Aventureira por acidente, compra o jogo pelo qual veste-se de outras personagens – ajudante de camarim, jornalista – sem nunca deixar de ser a mesma Eve, sobre a qual se sabe tudo, ou quase tudo, com facilidade. A menina que sonha com os palcos, que por isso mesmo, pelo desejo de interpretar, encontra o caminho para sua aventura verdadeira.
Logo nos créditos de abertura, com a elevação da cortina do teatro e a cidade exposta, Hitchcock resume seu filme: é sobre descortinar a sociedade. Natural, portanto, que a protagonista não possa ser outra senão ela própria. Ao longo dessa peça bem montada, lançada às ruas, aos cômodos fechados, ao banco traseiro do táxi, à feira beneficente, aos bastidores e ao palco do teatro, outras personagens são desmascaradas.
O contraponto à atriz iniciante é a profissional, interpretada por Marlene Dietrich, Charlotte Inwood. Para a estrela, Hitchcock dá uma sequência musical marcante e as luzes de Sternberg. A bela madura, atriz formada, mente com facilidade, e de novo obriga o espectador a pensar nas estátuas que forjou em seus filmes dos anos 1930.
Ela é quase desarmada na sequência em que a criança, a mando do pai de Eve (Alastair Sim), mostra-lhe uma boneca com saia suja de sangue – como o vestido sujo que teria deixado com o amante mais novo após matar o marido. As tantas personagens e situações não passam à tela sem humor, como ocorre também a alguns dos melhores filmes do mestre em sua fase britânica. A inocência e o provincianismo soam engraçados.
Ao escrever sobre Pacto Sinistro, em 1952, Vinicius de Moraes observa, a partir do “crime de motivação estranha”, um “complexo sistema de movimentos entrecruzados, dentro dos quais os seres só não se tocam por milagres de circunstância”. Última obra de Hitchcock antes de Pacto Sinistro, Pavor nos Bastidores também carrega esse “complexo”.
Mais que um acordo entre criminosos, envolve o jogo no qual as peças quase se tocam, no qual o horror é parcialmente ocultado. Eve guia o espectador por um teatro escuro, entre tropeços, guiada pelo instinto que lhe dá certezas e que, à ficção, é matéria cara. Sua forma sem graça torna a invasão a esse labirinto povoado de máscaras ainda melhor.
(Stage Fright, Alfred Hitchcock, 1950)
Nota: ★★★☆☆
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)
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