A senhora Paradine é pouco mais que um signo. Vivida por Alida Valli, é a europeia distante, belo enigma em pele, dama que envolve com facilidade qualquer homem ao redor. A isca, em Agonia de Amor, é justamente seu advogado, homem experiente, ou que assim deveria ser ao longo dessa obra menos lembrada de Alfred Hitchcock.

Para além do suspense e do filme de tribunal, fica-se com o romance. Filme de amor e sofrimento, o do homem por si mesmo, contra todos, com sérias dificuldades de assumir para si – e para a câmera – o que realmente sente. Filme de amor que não convida o público a sofrer por ele; pelas estruturas de um mundo antigo, exala mistério.
A bela mulher está presa. O início revela o momento em que ela, abaixo do quadro do marido morto, um general cego, é levada pela polícia. Hitchcock oferece alguns minutos de quebra, ritual de estranha paciência e palavras escassas no qual a dama da alta sociedade é conduzida à prisão após ser acusada de envenenar o companheiro.
Nessas salas fechadas, por conversas entre amigos ou conduções policiais, a câmera move-se tanto que faz Hitchcock parecer mero exibicionista. Mais tarde, nas passagens da visita ao castelo do homem morto ou no tribunal, os movimentos de aproximação ou circulação justificam-se melhor, criam expectativa e alta tensão entre os envolvidos.
Por trás de um filme de crime com traços noir está um exame curioso da elite britânica, o que justifica a fuga constante de Hitchcock a personagens menores. O advogado Anthony Keane (Gregory Peck) é casado com Gay (Ann Todd) e convidado a frequentar o círculo de homens poderosos da justiça local, como o do experiente advogado Simon (Charles Coburn) ou o do estranho e cínico juiz Thomas Horfield (Charles Laughton).
Ao não resistir aos encantos da cliente, o advogado rompe o necessário distanciamento e a ética peculiares ao seu trabalho. É destituído da máscara do homem reto, da figura adulta à qual precisa valer a verdade, para então dar de cara com sua nova persona: alguém desesperado para salvar uma criminosa da forca, a mulher que ama.
Mas o que se exige dele tampouco será encontrado nos outros. Esse reino de suposta retidão é banhado a alguma hipocrisia. O melhor exemplo pode ser visto no momento em que o poderoso Thomas investe em Gay, após encarar seu pescoço nu. Ele senta ao lado da moça e chega a segurar sua mão, o que não transcorre sem constrangimento.
A grandeza da mulher, fosse Valli uma grande atriz, deveria ser depositada na prisioneira, a que menos se comunica, beleza naturalmente fora da curva que David O. Selznick trouxe à América para ser uma segunda Ingrid Bergman. Gesto nobre, enfim, ao assumir seu crime ao tribunal e à opinião pública, ao se despir da máscara, ao contrário do advogado.
O que explica a comoção de outra mulher, personagem segunda, interpretada por Ethel Barrymore, a esposa do juiz assediador. Pela obra de Robert Hichens, com roteiro do próprio Selznick e adaptação de Alma Reville, Hitchcock apresenta com elegância algo podre do reino que ainda termina em pé, de peças que nem sempre combinam com atos.
Em entrevista a François Truffaut, o diretor reconhece que alguns atores não servem aos seus papéis. Peck, segundo ele, não pode interpretar um advogado britânico, “pois um advogado britânico é um homem muito educado e pertence à classe alta”. Outro problema é a personagem dada a Louis Jourdan, alguém que “devia cheirar estrume”.
Pela degradação de um homem que não sustenta sua narrativa, que engana a si mesmo exceto quando confessa seu amor, o filme leva o público a perceber que o suspense pode vir carregado de sentimentos dúbios e da ideia de que ninguém está salvo. Mesmo quando o realizador vê-se impossibilitado de conferir profundidade ao material.
(The Paradine Case, Alfred Hitchcock, 1947)
Nota: ★★★☆☆
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)
ACOMPANHE NOSSOS CANAIS: Facebook e Telegram
Veja também:
O Terceiro Homem: o homem real