Sem Rastros, de Debra Granik

O pai perdeu a vontade de viver em sociedade. Voltou da guerra e terminou em meio à mata, na companhia da filha. Ao contrário dele, a menina pouco sabe sobre a vida em comunidade, sobre organizações em grupo. Com ele, foi arrastada, não teve escolha, condicionada a uma forma de viver – ou, ao que parece, sobreviver.

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O bruto é deixado quase sempre de lado pela cineasta Debra Granik. Opção acertada. A natureza não parece tão hostil; sequer há esforço para fazer ver o frio, para que corpos contorçam-se para a tela, ou para que se escancare o machucado fruto da queda. Em oposto, o filme é até mesmo sensível, a natureza é resumida à teia de aranha.

Entre árvores e verde, por toda a vegetação, no início e no fim fica a teia. Em Sem Rastros, é a síntese da situação de pai e filha, entre natureza e sociedade, entre o isolamento e as redes. A teia de aranha dita a forma do animal solitário, ao centro, indica ao mesmo tempo a necessidade de compor a rede, a forma do espaço.

Não se segura ou se sobrevive sem expor esses caminhos, com equilíbrio e simetria. A rede confunde-se com a casa, a arma camufla-se entre o meio de vida. Essa é a história de um pai que não quer deixar rastros, que quer viver na mata; de uma filha que, entre idas à civilização e retornos, entende que certas relações não são assim tão ruins.

Inevitável, portanto: ele quer ir embora, ela quer ficar. Mas ambos, em boa parte da história, têm apenas um ao outro. Ela deve tudo, ou quase, a ele. E essa teia desenha-se a ela, mais que ao outro: a certa altura da obra de Granik, a menina, Tom (Thomasin McKenzie), fica com o protagonismo, cada vez mais sozinha, por si mesmo.

Há uma bela cena, ainda na primeira parte, quando pai e filha seguem à cidade. Usam um bonde aéreo. É possível ver, em primeiro plano, os pingos d’água sobre o vidro, sem que possam ser tocados. A proteção da cidade deixa tudo um pouco mais limpo, branco, metálico, e o mundo lá fora não chega a essas pessoas.

A vida a dois, aparentemente calma, logo tem uma reviravolta. A polícia descobre a casa, ou o esconderijo, do pai e da filha. Levados pelo serviço social, são avisados de que não podem ficar entre a mata verde, pois o local é público. Parece contraditório: se é público, por que não podem viver nele? Ambos são atingidos pela lei. Tentam acatá-la.

O pai, Will (Ben Foster), aceita viver em uma fazenda afastada. Tem de trabalhar. Ganha, com a filha, uma casa – que não é deles. E uma vida, acredita ele, que nunca será de ambos. A garota, por outro lado, gosta do que vê, do que sente, da organização que permite conhecer os outros – a teia cresce, movimenta a vida, as possibilidades.

Na nova moradia, o pai guarda a televisão no armário. Não esconde a dor, calado, ao ir do trabalho para casa, da casa para a igreja. Os rituais culturais e religiosos e os tipos que se impõem não serão estranhos apenas para ambos: ao público, fica a impressão de algo deslocado, exótico, distante. O que a alguns é normal, a outros foge à compreensão.

Ainda assim o pai não julga. A religião não tem grande presença. Eis um filme sobre um homem que perdeu as crenças, a esperança, em direção à filha que, tão nova, tão disposta a absorver o mundo, quer encontrar algo que lhe faça sentido. Momento-chave, por isso, é aquele em que ela deixa uma corrente na mata para pegá-la ao voltar da cidade. Caso o objeto esteja ali, sem que tenha sido encontrado pelo dono, poderá ser dela.

A corrente (o amuleto) é o que se deixa pelo caminho, o que se planta, para depois retirar – sem lesar alguém. Sinais da cultura, de certa sociedade fundada em símbolos, em objetos que comunicam a todos. A menina precisa voltar para reencontrar o objeto, voltar de sua jornada, formar seu arco, sem nunca renunciar à experiência do caminho.

(Leave No Trace, Debra Granik, 2018)

Nota: ★★★☆☆

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