Fedora, de Billy Wilder

O produtor quer resgatar a antiga estrela de cinema e a ela dar o papel de Anna Karenina. A estrela importa mais. Interessado em seu retorno triunfal na pele de personagem consagrada, o público, crê o mesmo produtor, não falharia na hora de comprar o ingresso. No entanto, os tempos e os temas são outros. Os jovens barbudos tomaram o negócio do cinema.

Haviam tomado, é certo, quando Billy Wilder e I.A.L. Diamond escreviam o roteiro de Fedora, dirigido pelo primeiro, lançado em 1978. Na mesma época, contudo, os estúdios começavam a retomar o poder: Guerra nas Estrelas, tendência incontornável, seguia a trilha aberta por Tubarão anos antes. O cinema, no fim dos anos 1970, não era mais dos barbudos. Talvez fosse dos nerds ou, mais ainda, dos novos homens de negócios.

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De qualquer forma, com barbudos ou outros na proa, não havia mais espaço para Wilder, que teve de fazer seu filme – o penúltimo – na Europa. Falar do passado da indústria não era exatamente um pecado; falar do passado com formas de um museu no qual desfilam “quinquilharias” às quais ninguém mais se sentia atraído, com visual “fora de moda”, era demais para uma indústria tão interessada em vender brinquedos quanto em vender filmes. De repente, o rei da sofisticação envelheceu.

Wilder é um gênio. Quase ninguém duvida. No início dos anos 1950, ele lançou o filme definitivo sobre Hollywood: Crepúsculo dos Deuses. Era sobre um roteirista preso a uma antiga mansão, com uma estrela de cinema mudo e seu mordomo que lhe escrevia cartas passando-se por fãs, para que a mesma acreditasse estar no topo.

Começa com um homem morto em uma piscina. Jovem mas morto, alguém que poderia ter terminado, em Hollywood, de outra forma. Terminou submerso na piscina de uma velha casa, de uma velha estrela, para salientar, segundo os toques do filme noir inventado pelos americanos, o que era a definição mais exata dessa terra de sonhos.

Fedora pode ser definido como um caminho seguinte, talvez uma continuação, mas em outra época. A mesma acidez está ali. O mesmo toque fúnebre. Talvez Wilder precisasse voltar suas armas de novo a Hollywood, a essa mesma indústria que traduziu e que agora o rejeitava: Fedora era sua resposta aos barbudos que nunca poderiam reproduzir o passado como ele. Simplesmente porque o viveu e conhecia o material de que era composto.

A beleza de um filme como tal consiste em perceber o quanto há de real na ficção de Wilder e Diamond, ódio e prazer ao mesmo tempo, a ponto de se esculpir o que há de mais belo no que há de mais podre. O clima noir dá lugar ao drama classudo europeu, aos laboratórios de cirurgia plástica frequentados por estrelas, ao castelo com funcionários armados com enceradeiras para fazer brilhar o chão que sustenta o velório.

De novo, Holden é o protagonista. A estrela é uma silhueta, ainda mais inalcançável. Imaginamos o protagonista, em sua juventude, fazendo sexo com Gloria Swanson, ainda bela nos anos 1950. Não conseguimos imaginá-lo fazendo sexo com Marthe Keller, tamanho é seu esconderijo. A explicação é simples: ela não existe.

Porque a estrela não existe. Quando deflagrada, ela (Hildegard Knef) está em uma cadeira de rodas, quase decrépita, ácida, a revelar ao protagonista (Holden) que fez de sua filha (outra personagem para a mesma Keller) um avatar, na tentativa de viver para sempre, de manter sua beleza às câmeras, para sempre nas telas do cinema.

Um delírio do qual não duvidamos. E, mesmo com algumas situações nem sempre verossímeis, Wilder e Diamond, a partir da história de Tom Tryon, têm a favor a ideia de que Hollywood e as pessoas que ali habitam podem fazer o possível e o impossível em nome do espetáculo. Essa fauna de esquisitices, fugas e tentativas de retorno casa perfeitamente a algo como Frankenstein ou, melhor ainda, O Retrato de Dorian Gray.

Holden é Barry Detweiler, assistente de diretor nos tempos em que Fedora vivia seu auge, produtor sem muito poder nos tempos em que ela foi colocada em reclusão. Ele não desiste: acredita que, com seu roteiro de Anna Karenina e Fedora, pode ter um grande filme nas mãos. O “sim” da estrela reclusa possibilitaria o início da produção.

Sem ela, ele não tem nada. Como ela, seu tempo passou, sua ideia de cinema não faz mais sentido. A meditação sobre o passado torna Fedora – esse passado materializado no fim dos anos 1970 – ainda mais triste. Como diz Charlotte Chandler em Ninguém é Perfeito, uma das biografias de Wilder, “este é um filme sobre pessoas que estão à procura de algo que perderam”. A estrela quer sua juventude, seu sucesso. A filha, o amor da mãe. O médico (José Ferrer), o respeito. O produtor de cinema, o retorno à indústria.

Ao redor do caixão da falsa Fedora, em espetáculo fúnebre que enterra de vez o cinema clássico, apenas o produtor encontrará a porta de saída. Vivo, mas um pouco velho demais para outra oportunidade. Todos que foram ao velório para se despedirem da estrela se depararam com uma imagem repleta de retoques, uma réplica branca, com luvas, feita para ser jovem para sempre, uma recriação possível, um truque.

(Idem, Billy Wilder, 1978)

Nota: ★★★★☆

AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

Veja também: Bastidores: Crepúsculo dos Deuses

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