Sem Teto Nem Lei, de Agnès Varda

Do passado da protagonista não sabemos quase nada. Em dado momento, ela diz já ter sido secretária. Deixou o trabalho – a sociedade, sua organização – para trás. Terminou na estrada, a caminho do fim. “Eu não abandonei meus chefes para encontrar outro chefe na estrada”, declara, a certa altura, a um professor de filosofia que se tornou pastor de ovelhas.

Diferente dela, o pastor decidiu parar – diz que passou da filosofia à descoberta da terra. Uniu-se a uma mulher e fez família em local afastado. Para a protagonista de Sem Teto Nem Lei, de Agnès Varda, o homem em questão prenuncia o fim: se não parar, ela vai morrer. O risco é sempre maior para quem escolheu ser andarilho.

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Nem precisava explicar: o início leva-nos à morte de Mona Bergeron (Sandrine Bonnaire), cujo corpo encontra-se em uma vala, em terreno de vinhas, no inverno. Rosto branco, sem vida, a conservar as contorções que só entregará na outra ponta, no encerramento. Entre os extremos está a proposta de Varda: o preço que se paga para viver a liberdade.

Em roteiro costurado com calma, em que cada pequena parte tem sua razão de existir, uma das criadoras da nouvelle vague revela-nos as vidas que cercam sua heroína sem que a mesma perceba. São situações que fogem à visão de Mona e, ao mesmo tempo, que só existem por causa dela, que emanam de sua existência interrompida.

A narradora, como nós, sabe de tudo. A vida de Mona – e seu caminho à morte – está dada. Só pode parar quando morrer. Qualquer tentativa de se estabelecer – por um homem, por um trabalho – é logo perdida. A ajuda dos outros não a seduz, sendo apenas uma forma de conseguir um pouco de comida, algum teto provisório, para seguir em frente.

Cansada do mundo ao qual não se enquadra, torna-se alguém para outro mundo, livre mas presa a um novo fluxo, uma pessoa da estrada. Ela vive cada hora como única, sem rotina. Sob a música de Joanna Bruzdowicz, Mona caminha sempre da direita para a esquerda; são momentos permeados pela fusão de planos (o raccord) e, por isso, dão a impressão de continuidade, de espaços percorridos, de um sentido que se busca.

“Enquanto estava filmando, eu sabia que haveria música apenas nas caminhadas de Mona. Eu decidi fazer 12 planos em movimento. Todos os doze movimentos são da direita para a esquerda, enquanto ela caminha sozinha”, declarou a cineasta. O movimento é o sentido da vida de Mona. O cinema representa-o pela mágica de suas colagens.

Entre as pessoas que cercam a protagonista, alguns tem mais destaque, outros apenas uma ou outra aparição. Conviveram ou trombaram com a heroína. A narradora questiona a importância que a moça teve para os outros na infância. Adulta e morta, é lembrada por alguns. Todos sabem um pouco sobre ela, ou imaginam saber. Alguns apenas trocaram olhares com a andarilha. Não sabemos se todos conversaram com a narradora que pesquisa sua história. Em alguns momentos do filme, por sinal, Mona está sozinha – o que nos revela a imaginação de Varda sobre o isolamento da personagem central.

Uma mulher (Macha Méril) que encontrou Mona a certa altura leva um choque elétrico e quase perde a vida. A um amigo, diz que viu imagens passarem pelos olhos, parte de sua vida quando próxima demais de perdê-la. Entre essas imagens, as de Mona, alguém com quem pouco conviveu. Diz que a moça olhava-a com “uma espécie de reprovação”. É possível deixar uma marca em alguém com quem se viveu tão pouco?

Para Varda, laços são feitos mesmo a partir de pequenas experiências. A arte é a mediadora possível. Por Mona, a artista fala, tenta ceder um pouco da personagem que, no fundo, ninguém saberá quem foi, a mulher morta, saída do mar, a mulher fria que observa os espaços e suas pessoas com reprovação. Mais tarde, a cineasta entregaria o filme irmão de Sem Teto Nem Lei, Os Catadores e Eu, no qual registra pessoas que vivem da comida e dos descartados que retiram do lixo – em alguns casos para fazer obras de arte.

Vai aos marginais, aos incompreendidos, aos invisíveis. Deposita neles – na obra, sobretudo – uma boa dose de ternura. Aproximação que sempre enriquece, em filmes que não precisam explicar muito. No caso de Mona, sua vida é feita de tropeços, sustos, atravessada às vezes por algo inexplicável e bizarro – como os homens vestidos como árvores, sujos de vinho ou lama, parte de uma cultura que produz medo e repulsa e que não raro nos faz compreender a escolha da personagem, sua tentativa de se livrar de tudo.

(Sans toit ni loi, Agnès Varda, 1985)

Nota: ★★★★★

AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

Veja também:
Os Catadores e Eu, de Agnès Varda

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