Os Catadores e Eu, de Agnès Varda

Para as pessoas vistas pela lente de Agnès Varda, recolher algo é o primeiro passo ao nascimento de uma obra de arte ou um gesto de repúdio, mais que uma necessidade. Ato de encontrar, dar vida ao que há pouco estava morto, respeitar a existência do objeto. A própria diretora não resiste: leva duas cadeiras e um relógio sem ponteiro para casa.

A cada saída às ruas, à cata de mais vidas, Varda retira um tempo para si, para os detalhes que acha pelo caminho: quer “agarrar” com as mãos os caminhões da estrada; vê beleza nas goteiras da parede; revela curiosidade para falar com alguns seres que cruzam seu caminho, não necessariamente essenciais ao tema de Os Catadores e Eu.

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Há sempre motivo para ver algo mais, para não deixar escapar um “acidente”. É como se dissesse que seu filme – esse grande filme sobre catadores de frutas, vegetais, móveis, tudo o que poderia virar lixo – está em construção, e que escapar dele, muito ou pouco, é permitido, como se nada – a começar pelas imagens – pudesse ser desperdiçado.

Cineastas, diz Varda, são – ou deveriam ser – catadores. Encontrar algo, restituí-lo, dar-lhe nova serventia. O mundo está aí, todo, para ser recolhido, refeito, o que justifica a existência da arte: transformar algo em outra coisa, dar forma à parte sem forma. “O propósito da arte é conciliar nosso mundo interior com o exterior”, afirma um artista entrevistado pela cineasta, que compõe sua obra a partir dos inservíveis.

Os catadores estão por todos os lados, soam invisíveis. Varda resolveu vê-los, ou tocá-los, ou, no extremo, catá-los pela câmera que não chega a ser uma completa intrusa. A diretora pede permissão: seu trabalho carrega ternura em cada questionamento, em cada andança ou movimento de câmera, sem nunca soar excessivo ou panfletário.

Começa com o caminho da batata, sua produção, seu recolhimento, o tratamento industrial e, em seguida, o destino do alimento que, por não se encaixar nos padrões desejados pelos consumidores de supermercado, é jogado fora. Toneladas de comida descartadas alimentam outras pessoas. Os primeiros que aparecem para recolher a batata são os ciganos.

Os catadores surgem de repente, vagam, moram na rua ou em trailers, dividem espaços com os outros, falam-nos da felicidade dessa pequena aventura diária que envolve a procura do alimento nas latas de lixo, espaço do inservível. Encontram frango, defumados, verduras. Explicam que, mesmo em estado aceitável, os alimentos foram descartados porque passaram da data de validade. “Recuperar, para mim, é uma questão ética, porque acho absolutamente escandaloso haver tanto desperdício pelas ruas”, diz um deles, calçando galochas.

A primeira entrevistada declara que catar “era o espírito de antigamente” e que sua mãe lhe dizia para recolher tudo, “para não haver desperdícios”. A arte, como mostra Varda, havia retratado a questão: os catadores podem ser vistos em quadros, nas pinturas sobre uma prática substituída, em grande parte, pelas máquinas que escavam a terra.

A indústria, sabemos, é cruel. Ignora quem está à borda. Algumas plantações permitem a entrada dos catadores depois de uma determinada colheita, para que não haja desperdício; outras empresas preferem o descarte, o lixo – o que também não impede que o alimento termine consumido por alguém com fome que vaga atrás dele. 

Personagens curiosos cruzam o caminho da cineasta, como jovens detidos pela Justiça após atos de vandalismo contra um supermercado. Todos os dias eles iam ao lixo da empresa e, segundo seu gerente, faziam sujeira. Para expulsá-los, o mesmo gerente teria colocado água sanitária entre o lixo, evitando assim que pegassem seus restos.

Chama a atenção a história do vendedor de revistas e professor que vai às feiras para retirar vegetais e frutas deixados pelo chão. Ao se aproximar, Varda descobre que ele ajuda imigrantes, à noite, em aulas de francês. Por caminhos como esse, descobrimos muito mais que catadores em seu documentário. De suas imagens transborda humanismo.

(Les glaneurs et la glaneuse, Agnès Varda, 2000)

Nota: ★★★★☆

AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

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