O Destino Mudou sua Vida, de Michael Apted

Quase não percebemos a guinada de Loretta Lynn, da vida como mãe de família ao sucesso como cantora country. O crédito pelo acerto é do diretor Michael Apted, que, como poucos, soube criar uma cinebiografia decente, de momentos grandiosos, alguns raros, diferente das muitas que inundam nossos cinemas e parecem feitas para agradar a família do cinebiografado ou o próprio, além de oferecer o mito vendido pela mídia.

Do início ao fim, Loretta é uma moça simples, e não ousamos enxergá-la como mulher formada até os últimos instantes de O Destino Mudou sua Vida. Será sempre a garota ingênua que se recusa a fazer sexo com o marido em uma noite fria de núpcias no hotel de beira de estrada, que não sabe o significado de “tesão” e diz a palavra no rádio, ao vivo, e que ataca as amantes do companheiro como uma criança enfezada.

RECEBA NOSSAS ATUALIZAÇÕES: Facebook e Telegram

Para Sissy Spacek, Apted pede que seja apenas essa moça sem experiência, reforçada pelos versos de um estilo musical que condiz com seu interior. Ao fundo e às vezes à frente, uma América de honky-tonks, de gente caipira com a qual a forma singela e quase apartada de Loretta – em momentos nos faz pensar em Carrie – casa perfeitamente.

O filme repele a falsidade e se volta ao real – em várias imagens que Apted traz de sua experiência como documentarista – sob o olhar de alguém que quer apenas o mínimo, a quem cantar é uma diversão – ou sua forma inconsciente de ser alguém contra a sociedade que a torna uma dona de casa, dependente do marido bronco, com vários filhos para cuidar, que se casa por amor e é estuprada na citada noite fria de núpcias.

O filme de Apted confunde-nos, subverte expectativas: sua personagem central não é uma heroína e nem quer ser, seu marido é o responsável por empurrá-la à fama, da compra do violão às viagens às estações de rádio país afora, ao mesmo tempo em que se revela – e vemos isso desde sua primeira aparição – inconfiável, não raro abjeto e idiota.

Ainda assim nos aproximamos e aprendemos a gostar dessas pessoas. Essa confusão pode tornar o filme menor para alguns. Prefiro encará-lo como uma obra real sobre pessoas reais, imperfeitas, ainda assim cativantes. A química entre a encolhida e às vezes – poucas vezes – explosiva Sissy Spacek e o cafajeste Tommy Lee Jones vale a experiência.

Ele quer torná-la uma estrela da música, mas depois não consegue mais lidar com o protagonismo da mulher. Ela, por sua vez, avança ao sucesso à medida que se desequilibra: quer do marido o mínimo, alguém que cuide dela, alguém que possa ajudá-la a sustentar o peso dessa nova vida repleta de pressões, na estrada, que é a vida de artista.

Apted não se recusa a oferecer os defeitos de ambos: essa é a história de figuras estranhamente excitantes divididas entre a fraqueza e a ignorância, e figuras humanas o suficiente para nos fazer entender que não há uma saída possível e nem sempre todo um universo pálido, de momentos cruéis e humilhantes, necessariamente desembocará em um fechamento triste, em um golpe dramático, em uma mensagem edificante.

Podemos ver o que joga a favor do curso natural da história – o olhar de Loretta para Doolittle no início, como se estivessem destinados um para o outro – e, ao mesmo tempo, o que joga contra – a sequência em que a protagonista retira o marido dos braços de outra mulher, em um carro, na feira em que ela apresentava-se. Não se trata de uma história de amor; é sobre estar preso a costumes, a uma cultura de dependência que nem a maior independência da mulher em questão – sua carreira e seu protagonismo – poderá salvá-la.

A cena em que Loretta afirma não poder subir ao palco e se volta para a parede, sem forças para encarar o marido e outros homens, como uma criança de castigo, leva-nos a enxergar com clareza a ideia que permeia o filme: ela dá um passo rumo à negação, a um gesto de força, à medida que continua bloqueada pelas estruturas que a rodeiam.

Ela perderá, sabemos. E nem por isso deixará o marido. Sua única vitória é a escolha do lugar de um cômodo na nova casa que Doolittle está construindo. Ele quer o quarto com janela voltado à paisagem. Ela quer do lado oposto. O marido – que não costuma cumprir promessas – termina aceitando a vontade da mulher. Antes, ele havia prometido ao seu pai nunca agredi-la ou levá-la para longe da família. Descumpriu ambas. Quanto ao cômodo, não se sabe: suas paredes sequer haviam saído do chão.

(Coal Miner’s Daughter, Michael Apted, 1980)

Nota: ★★★★☆

AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

Veja também:
Elvis, de Baz Luhrmann

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s