Ana dos Mil Dias, de Charles Jarrott

Nos mil dias que antecedem sua cabeça cortada, Ana Bolena (Geneviève Bujold) vai do ódio à paixão e depois retorna ao ódio. Nesse período, ela aprende a amar quem odiava e depois tem de voltar a odiar o mesmo rei que lhe deu uma filha – a criança que fecha o filme de Charles Jarrott, que, como pronunciou a mãe, tornar-se-ia uma importante rainha.

Bujold é pequena, parece ter menos idade do que realmente tem em Ana dos Mil Dias. Temos dúvidas, na partida, se dará conta de uma mulher que precisa lutar uma batalha que pode vencer – a do amor, que inclui colocar seu rei em desespero – e outra que não pode – a que envolve sua natureza e os costumes da época, ao não conseguir ter um filho homem.

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Mais do que ela, o rei quer um filho. Para ele, mulheres são peças de reposição que precisam gerar descendentes. Henry VIII é cínico, corrupto e, para vivê-lo, ninguém melhor que Richard Burton. A cada investida no que deseja, para que as coisas saiam do jeito que quer, ele afirma aos outros a intervenção divina: seria, na Terra, alguém a mando de Deus, e nada faz sem que haja vontade dos céus. Diz que consegue conversar com o Criador.

A religião é uma desculpa, está à sua disposição. A dama jovem que vê em uma festa, a nova desejada, tem de assentir ao poderoso de roupas brilhantes, barba saliente, que pergunta a amigos de caçada os truques para conquistar e iludir mulheres. Na forma como está dado o tabuleiro do filme de Jarrott, baseado na peça de Maxwell Anderson, o rei pode tudo à medida que finge consentir com as forças da Igreja e de um tribunal.

Ana Bolena tinha outro pretendente. Queria se casar com Lorde Percy (Terence Wilton). Em sua primeira aparição, o rapaz eleva-a nos braços. A felicidade destaque-se entre a coreografia, o vai e vem de pessoas pelo salão, todos aos olhos da corte e do rei, todos a servir ao teatro que tem seus totens, seus cavaleiros, seus músicos, e uma rainha cansada (Irene Papas) que, do rei, apenas ouve que não foi capaz de lhe dar um filho homem.

Ana Bolena ouvirá o mesmo mais tarde. A cena repete-se. O teatro confirma-se. Henry VIII talvez a tenha amado por algum tempo. Seu amor tem a ver com a crença no poder. Se a mulher não é capaz de ter um filho, então Deus não teria motivos para ser favorável àquela continuidade. Amante morta, amante posta. Henry VIII ainda precisa conquistar o descendente e, sem sucesso, havia tentado antes com a irmã de Ana.

Para concretizar suas certezas, e ainda que os rituais possam, por algum momento, derrotar o rei, ele escolhe confrontar a Igreja Católica. A mesma que, no estado dado dos rituais, na boa acolhida dos religiosos em vermelho no interior do reino, lambia suas botas – na figura odiável do Wolsey de Anthony Quayle, que não permite o casamento de Ana Bolena com Percy e manda o rapaz para longe. Abre assim o caminho para o rei.

Ana não aceita, mas sabe que não tem meios e forças para evitar os desejos do líder ao qual todos, incluindo seu pai servil, tombam a cabeça. Como o confronto significará uma derrota, ela aprende a jogar: ao excluir o sexo, a divisão da mesma cama, enlouquece o rei enquanto o mesmo diz amá-la. Chegamos a crer nele. E ela deixa que continue, que use todas as suas forças – na condição de homem político, na interessante união entre vida privada e pública proposta pelo roteiro – para conquistar o direito de tê-la, a começar pela anulação do casamento anterior, o que leva justamente ao rompimento com a Igreja.

Não tem jeito: Ana está condenada à lâmina dos hábeis carrascos do castelo, postos sobre o palco de madeira, para a alegria do público que considera a rainha uma prostituta. A ironia desse filme em parte elegante, menos falso do que costumam ser os filmes sobre reinos, reis e rainhas, está na contínua invisibilidade da mulher, a eterna culpada.

O trabalho de Jarrott tem seus pequenos grandes momentos, como a cena em que o rei entra feliz à procura de um filho que acabou de nascer e, nos braços da nova mulher, encontra uma menina. Ou a cena em que o mesmo Burton vai à cela em que está Ana Bolena, à espera da morte, para tentar confirmar que ela realmente lhe foi fiel. O poder, diz Jarrott, cega o poderoso a ponto de não ver mais sua própria infidelidade; a corrupção está na base de sua vaidade como macho provedor, amaldiçoado por um Deus que não lhe confere um filho.

(Anne of the Thousand Days, Charles Jarrott, 1969)

Nota: ★★★☆☆

AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

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