O Acontecimento, de Audrey Diwan

Podemos ver na história de Anne Duchesne (Anamaria Vartolomei) – uma garota atrás de todos os meios para realizar um aborto – inúmeros acontecimentos. Podemos ver nela um só. Nos dois casos o impacto não diminui. O título, no singular, confunde-nos.

Ao enxergar só um “acontecimento”, estamos condicionados a aceitá-lo como uma espécie de milagre – a nova vida, a gravidez – ou seu exato oposto: o aborto que mudará por completo a existência da jovem que não quer o filho. Um “acontecimento” como a única forma de salvar uma vida – a da mãe -, ainda que o preço, sabemos, seja alto.

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Os acontecimentos ao meio – a procura pela ajuda de um médico, a falta de ajuda das amigas e do companheiro, o afastamento dos estudos, enfim o encontro com a mulher que pode ajudá-la não sem cobrar alguns francos – refletem o maior interesse da cineasta Audrey Diwan nesse filme corajoso sobre estar sozinha e contar com a própria sorte.

Anne prepara-se para o vestibular. Quer ter uma carreira, não tem planos para seguir o caminho da mãe. Nas festas que frequenta com duas amigas, tem fama de ser fácil, a “vadia” da turma. É realmente livre para ter mais de um homem, para se entregar a eles quando bem entender. Isso nada tem a ver com o que vem depois, ainda que a sociedade esteja sempre a postos para encontrar “causas” e sufocar a natureza de seres como Anne.

Ao descobrir que está grávida, ela entra em choque. Decide abortar e, em sua busca por ajuda, não encontra quase ninguém para apoiá-la. O filme constrói-se em clima frio, com uma fotografia lotada de sombras, opaca, com tons de azul – longe do universo de sonhos dado com frequência às idealizações que rondam o mundo feminino. O aspecto da tela, quase quadrada, ajuda no efeito de aprisionamento, somado à pouca profundidade de campo.

Nos contornos de um mundo muito particular, de aproximação extrema, chegamos ao realismo que, de tão cru, em alguns momentos nos joga ao campo do horror, da loucura, do delírio que o real pode representar. Nesse terreno de aparência impenetrável, a partir do livro de Annie Ernaux, penetramos por inteiro, sob o olhar de uma moça em um labirinto.

Estamos no reino do quadro, no qual interessa o que antecede seus limites, o que cabe dentro, o que podemos enxergar. Difícil inclusive imaginar o que há além. É um filme sobre o aborto que não nos priva de nada, nem da dor extrema nem do sangue, nem dos últimos instantes em que a mesma menina ainda se esforça para não desmaiar perante o médico.

O texto é sofisticado, cheio de detalhes que não passam despercebidos. Na escola, em uma das primeiras cenas de O Acontecimento, Anne é convidada pelo professor a interpretar um poema. Segundo ela, o texto em questão tem fundo político. Sua interpretação vai além das palavras no papel: o ano em que foi escrito é 1942, portanto em plena Segunda Guerra Mundial. Além disso, como a própria aluna identifica, há ali um caso de anáfora, “uma figura retórica que consiste na repetição cadenciada de palavras”.

Muito do que vem depois está expresso nessa cena: a mulher impedida de fazer uma escolha que envolve seu próprio corpo contra o Estado que a pune (uma questão política), o contexto da época (nos anos 1960 o aborto ainda era proibido na França) e a cadência estabelecida pela obra, que joga com a aparência de repetição à medida que não nos tira do lugar.

O filme de Diwan, por outro lado, confronta qualquer forma de retórica: sua base é a ação, o movimento, as inúmeras voltas da garota que não pode levar à frente sua gravidez. É, como já dito, uma expressão da realidade que nos leva a viver seus pequenos instantes, que estende propositalmente a dor – inclusive a física – e não confere saída ao labirinto.

Como nos mostra Diwan, o aborto não é nunca o caminho mais fácil. Seu filme, a exemplo do romeno 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias, reproduz o que há de pior em um sistema que não permite que as mulheres falem, ou gritem. Quando chega o momento de Anne fazer o procedimento para abortar, a mulher que lhe presta os serviços (Anna Mouglalis) pede que ela não grite, que sofra calada, pois as paredes do apartamento são finas. Há ali muito mais que um local de paredes rarefeitas e mulheres silenciadas.

(L’événement, Audrey Diwan, 2021)

Nota: ★★★★☆

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

Veja também:
4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias, de Cristian Mungiu

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