A imagem que resume 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias, sobre a condição feminina na Romênia de Nicolae Ceaușescu, recusa o close-up. Vemos apenas a parte de trás da cabeça da protagonista, sua blusa verde em contraste com o azul e o branco dos azulejos. Um quadro de indiferença, medo, espaço frio de mulheres que têm as faces arrancadas.
O cinema de Cristian Mungiu é o da saturação do tempo, da câmera na mão, da impressão da realidade dada por frações e aberturas. Esse é seu drama, e essa é a grandeza que apenas o cinema pode conferir: sem conseguirmos ver por diferentes ângulos desse tabuleiro, de um lado para outro (a decupagem clássica), somos fixados em apenas alguns pontos da cena, obrigados a vagar atrás das personagens, a sofrer com seus instantes.

A câmera de movimentos precisos, nunca aleatórios, cega-nos ao mesmo tempo em que nos permite ver tudo. Algo paradoxal, típico do cinema realista, tão perto e tão longe, tão físico e tão frio. Por outro lado, com sua escuridão e aparência embolorada, 4 Meses chega a nos confundir, a subverter o real que, até certo ponto, parece-nos evidente.
Nessa construção em que ora podemos ver quem fala e ora não enxergamos a totalidade do espaço, em que as personagens nos dão as costas, em que torcemos, no momento mais pesado, para a câmera não mostrar o feto em sangue, Mungiu prova que o mal-estar depende apenas da espera, do tempo, da contagem regressiva expressa no título: 4, 3, 2…
É um filme de múltiplas camadas, passado em poucas horas, sobre duas amigas universitárias. Uma delas, Gabita (Laura Vasiliu), está grávida e escolheu praticar o aborto – crime com prisão na Romênia ditatorial. A outra, a protagonista Otilia (Anamaria Marinca), escolhe ajudar a amiga nessa jornada desconfortável e banhada em sombras.
Dividem um pequeno quarto. Ao centro, um aquário. Do lado de fora, pela janela, a neve. Pelos corredores, a venda de produtos em mercado negro é constante. Nas ruas também. Do espaço fechado no aquário à abertura do campo, com as moças ao lado, nada é reconfortante ou oferece alívio: esse é um local de prisão, de vidas limitadas, de pouca luz.
O aquário remete-nos às delimitações do quadro, pelo qual só vemos o que Mungiu deseja; ao passo que a câmera recua e o espaço é ampliado, com a aparição das personagens nos dois cantos do cômodo, entra em cena – e em contraste – os efeitos do campo. Há muito mais para ver, ou mesmo para imaginar, para além das delimitações visuais.
O drama volta-se aos espaços fechados. Otilia reserva o quarto de hotel onde será realizado o aborto, vai ao encontro do homem que o fará. Surge um vilão de face real, direto, um ser monstruoso que se esforça para assustar as mulheres ao mesmo tempo que lhes concede o espírito do guia, do experimentado, o último a quem elas podem recorrer.
Na pele de Vlad Ivanov, é a figura odiosa que, na ausência do Estado, impõe as próprias regras e toma para si o direito ao abuso. É cirúrgico na maneira como compõe suas palavras, sua espera, cada ponto, cada vírgula, como se desloca e toca essas mulheres, como finge respeito e propõe o preço a ser pago naquele quarto de hotel.
Ao longo do filme, Mungiu mostra que a vida dessas moças depende da clandestinidade. E que o proibido já foi integrado o suficiente à vida comum.
A assustada Otilia é nossa guia por horas sufocantes envolvendo o aborto da amiga. Sabemos de sua força e independência, do que se esconde atrás de sua simplicidade. 4 Meses não é um filme cujas mulheres bradam a força feminina, ou um filme feminista. É sobre não sucumbir ao mal e à indiferença projetados no mais simples dos ambientes.
Na companhia da protagonista – por becos escuros, corredores de pequenos prédios, ruas vazias, pontes de metal e uma festa na qual se celebra a vida -, deslocamo-nos, em mente, a tudo o que a atrai para fora, para a ação que precisa viver, com a morte que precisa carregar, a do feto abortado como revelação do que tanto se quer evitar e esconder.
(4 luni, 3 saptamâni si 2 zile, Cristian Mungiu, 2007)
Nota: ★★★★★
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

Veja também:
Martin Eden, de Pietro Marcello