Difícil acreditar que um dos responsáveis pela campanha que retirou Augusto Pinochet do poder, em 1988, no Chile, gastava seu tempo – a refletir sobre sua época, seu papel, ou apenas para se divertir – com um trenzinho de brinquedo. Em diferentes momentos, essa é a fuga encontrada pela personagem de Gael García Bernal, o publicitário René Saavedra.
E são os momentos nos quais entendemos a segurança e as intenções de Pablo Larraín – em um conjunto de filmes extraordinários sobre sua nação, com Tony Manero, Post Mortem e O Clube na companhia deste No. Nas ditaduras ou nas democracias, sob governos de direita ou de esquerda, venceram a propaganda e sua máquina de produzir sonhos.
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Eis a ironia desse filme brilhante: não é sobre a vitória da esquerda. É sobre a vitória da estética do mercado, da forma americana de fazer publicidade. E o filme não quer nos dizer se isso, em dada época e local, é certo ou não. Os idealizadores de uma campanha quase sempre feliz, “para cima”, compreendem o espírito de seu tempo.
Saavedra ainda anda de skate, ainda monta seu trenzinho. Em vários momentos silencia. É adulto quando precisa ser. A bem da verdade, quase sempre o é. Suas armas contra o poderio militar e a campanha pelo “sim” envolvem a criação de peças que clamam pelo futuro, menos pelo passado. Por consequência, termina por insultar os perseguidos e comunistas e, aos ditadores, apresenta algo contra o qual não têm armas: a felicidade.

Para Saavedra, o fim de uma ditadura depende do diálogo com sua mídia. A oposição da qual é parte precisa mudar sua forma de pensar. Sua aceitação à batalha o faz jogar com as armas que tem. Com o capitalismo de estado, joga-se com o sonho que o capitalismo de estado pretende vender: o progresso e a falsa felicidade estampada em todos.
O futuro é um conceito amplo demais. Nos tempos da publicidade babaca dos anos 1980, feita para vender refrigerante e fornos de micro-ondas enquanto pessoas eram torturadas e mortas, era preciso mostrar gente feliz dançando nas ruas, gente alta e contente comendo em um piquenique em belo campo dourado, até mesmo o humor que envolve um homem e uma mulher na cama. Ele quer o “sim”, ela diz “não”. E nós rimos.
Quando somos apresentados a Saavedra, ele discursa para um de seus clientes, uma marca de refrigerante. Diz, antes de soltar o vídeo, que eles assistirão a algo nunca antes levado à televisão chilena. Saavedra traz os moldes de fora, importa a publicidade que dá certo em outros países. É bem sucedido. Nem sempre foi assim: descobrimos que esteve exilado por algum tempo, é filho de uma liderança de esquerda e foi casado com uma mulher (Antonia Zegers) que com frequência é presa por protestar e fazer oposição a Pinochet.
A personagem é o próprio filme: sua alma é transmitida pela sua estética e sua forma de ver o mundo – nas formas da televisão, mas não sob sua constante fantasia e infantilização – é levada à tela. Assim chegamos ao grande acerto de Larraín: realizar No com visual lo-fi. Se primeiro há estranhamento, logo compreendemos que estamos em um filme no qual a enxurrada de arquivos da época – por isso a própria época – casa-se à ficção.
A certa altura, não sabemos mais se estamos vendo algo real ou representado. A ideia é justamente borrar as transposições. Vivemos o passado como ele foi visto pela tela da televisão, suas angústias e descrenças, em diálogos passageiros e momentos íntimos, tudo isso fundido ao material jornalístico ou publicitário, nos limites do vídeo.
É sobre ver com alguma dificuldade, é perder algo, ou muito; é compreender que essa mesma época retratada não se desprende da maneira como foi televisionada e depois arquivada. A visão do diretor passa pela aceitação do tempo, e por sua absorção. Interessante notar que em alguns momentos, como na sequência em que Saavedra está no meio de uma manifestação e deixa seu filho no carro, com soldados lançando jatos de água nos manifestantes, o poder do filme em nos colocar no meio da ação é, graças a esse visual, amplificado.
O protagonista sabe tão bem quanto nós que o homem que vende micro-ondas e promete campanhas publicitárias revolucionárias é o mesmo que pede a uma mulher que não fique muito tempo perto do micro-ondas, por risco de radiação. O mesmo que sentiu na pele os efeitos de Pinochet e, com suas armas, nunca se esquivou de participar da batalha.
(Idem, Pablo Larraín, 2012)
Nota: ★★★★☆
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

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Argentina, 1985, de Santiago Mitre