O protagonista é um homem comum, pai de família, que desconfia das saídas noturnas da filha com o novo namorado e aceita as broncas da mulher e do filho. Ele, promotor de Justiça, inicialmente recusa seu lugar na História – “A História não foi feita por homens como eu” – e depois lança a frase que ajudaria a lançá-lo ao centro da mesma: “Nunca mais”.
A Julio César Strassera, Ricardo Darín confere o que melhor sabe compor: a dimensão humana. Nesse filme político de salas envernizadas, em que se respira o passado nos antigos telefones públicos, nas máquinas de escrever, nos intermináveis arquivos de papel, o ator clama pela aproximação e faz a História ter sentido pelas vias da “história menor”, a sua.
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É de um país recém-saído de uma ditadura que trata Argentina, 1985. E de um homem que precisa encontrar seu lugar nesse mesmo país: enxergar a si mesmo como peça fundamental da História de seu povo. Até chegar ao “nunca mais” o caminho é longo. O julgamento dos militares de alta patente envolvidos com a ditadura é nosso encontro com Strassera.
O filme de Santiago Mitre tem muitos méritos. O maior é a aproximação permeada propositalmente por imperfeições humanas e alívios cômicos, de gente simples que, sabem bem os amantes das narrativas, logo se alça ao seu propósito – com direito a jogadas dramáticas batidas de filmes de tribunal, do choro da vítima à frase de efeito.

Mitre vence-nos com a aproximação e as dúvidas que aceita encampar. Para Darín não é preciso dar quase nada. O filme é dele a ponto de só enxergarmos Darín, ator extraordinário em sua concisão, em seu apego ao quase nada, à sua forma mundana. Quando resolve deixar o carro em casa (por medo de uma bomba) e caminhar com o filho até o trabalho, acreditamos que ele pode fazer isso, e que tudo parte de reconstrução exata.

Quando lança xingamentos e gestos baixos aos militares dentro do tribunal, percebemos que seu lado cômico expressa-se com tanta facilidade que não deixamos de ver o mesmo Darín o tempo todo, sem retoque. Alguns reduzem o cinema argentino ao ator, o que é um pecado; por outro lado, parece haver alguma verdade nessa posição: “lá vamos nós ver mais um filme de Darín”. E mais um sobre a humanidade que recobre a Argentina.
E mesmo que pensemos ter acesso total a Strassera, é bom olhar com cuidado. Argentina, 1985 é um filme em que o herói sofre para escapar de salas fechadas e de seus conchavos. Em suma, da política. Evita, no início, falar com seu superior. Pede para a secretária dizer que não está. Sabe que algo grande – grande demais para um homem comum – pode cair em seu colo e por isso prefere evitar tais encontros – na sua sala ou na sala do outro.
Mais tarde, quando é convidado para uma reunião com o presidente do país, vê-se dobrado pela ocasião: não pode recusar tal convite. E a essa reunião não temos acesso. A porta é fechada e ouvimos apenas algumas palavras em seu interior. Vem a elipse. Em casa, Strassera é evasivo, não quer dar detalhes da conversa com o presidente à mulher que o questiona, e em vários momentos recusa a empolgação do filho pequeno.
Strassera luta contra as concessões. No tribunal, aberto aos olhos dos espectadores presentes ou da televisão, pode ser ele mesmo e assumir seu papel de promotor. E pode fazer o seu trabalho sem que precise se curvar às ordens dos outros. Talvez eu esteja sendo otimista demais. Alguns sinais desse filme dinâmico talvez sejam enganosos e nos poupam das coisas como elas são, dos jogos das salas fechadas. De qualquer forma, o que vemos no tribunal é um homem de alma lavada, pleno em sua função.
E não falamos aqui apenas de salas secretas ou impenetráveis. Em um momento curioso, perto do fim, o filho do protagonista (Santiago Armas Estevarena) segue os juízes e os observa no interior de uma pizzaria. O pequeno espião sabe do que trata aquele encontro: os togados discutem quais penas deverão aplicar aos militares. Todos querem saber o veredicto. De longe, o menino só pode fazer suposições. Ele assiste a uma das reuniões mais importantes de sua nação do lado de fora, com alguma distância, o que, de novo, ajuda-nos a pensar na tamanha frustração que um momento cômico pode abarcar.
Em um país de torturadores e torturados, ficamos com o olhar da criança e, na manhã seguinte, é justamente ela, de novo, que vem ao nosso socorro – contra o olhar do pai, que se sentia derrotado. É quem pede que o pai enxergue o lado cheio do copo e continue a luta nessa Argentina que deu passos importantes para fazer as pazes com seu passado.
(Idem, Santiago Mitre, 2022)
Nota: ★★★★☆
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

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