Duas Garotas Românticas, de Jacques Demy

O loiro Jacques Perrin é o marinheiro prestes a se tornar um civil, pintor que idealizou uma mulher para não encontrá-la, ou apenas para nela esbarrar, passar pelos locais que ela passa. Em Duas Garotas Românticas, sabemos, ela é Catherine Deneuve, rumo a Paris, à espera de um homem para amá-la.

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Ainda que a carona final aponte ao encontro tão esperado, o diretor Jacques Demy prefere manter o mistério, ou a distância: esses seres nascidos um para o outro – ambos apaixonados, ambos loiros, ambos cantores e dançarinos – são perfeitos porque não se encontram. Vivem o amor perfeito porque não se tocam.

É a graça do amor imaginário, nesse filme que marcou época e, ao contrário do que muitos podem dizer, não envelheceu. Fixou um tempo, registrou uma época, voltando ao passado dos musicais norte-americanos – que, à época, é bom lembrar, nem estavam tão distantes assim. O moderno tornava-os antigos da noite para o dia.

E se Perrin e Deneuve não podem se encontrar nunca na pequena e agradável Rochefort, outros se encontram por eles. Há, por exemplo, a irmã gêmea dela, vivida por Françoise Dorléac, ruiva, de chapéu amarelo, que termina se apaixonando por um músico que, como todos, termina naquela pequena cidade na qual ocorrerá uma quermesse.

Ele, por sinal, ganha vida no corpo de Gene Kelly, grande ator e dançarino americano, ainda com todo fôlego e jeito apaixonante. Todos – mesmo antes dele – dançam à sua forma, à forma antiga: deslizam por pequenas ruas, em cores, através das esquinas nas quais é possível esperar, a cada segundo, uma nova trombada. Todos, ou quase todos, devem se encontrar em algum momento, e devem dançar.

A fórmula é conhecida. As coincidências convertem-se em certezas. O mundo bruto fora de Rochefort quase não chega. Os militares que marcham à rua – e que quase tragam o pintor de Perrin, que entre eles esconde as mechas loiras, empunha uma arma e perde a paixão – dão discrepância insuficiente para mudar o cenário.

O pintor idealiza em quadro sua musa e com frequência termina na lanchonete ao centro da praça central. É o ponto de encontro dos apaixonados, onde lamentam problemas, à espera do amor perdido. Tudo em um único fim de semana, entre os que encontram seus pares (e ficam) e os que decidem ir embora, talvez ao mundo real para além do rio, no limite da cidade.

Os rapazes de fora, caminhoneiros, montam tendas na praça, expõem diferentes produtos e, claro, dançam ao grande público do domingo. No mundo mágico de Demy, banhado à velha Hollywood, esses rapazes dançam ainda antes: enquanto montam suas estruturas, enquanto andam pela rua, enquanto expressam suas formas de viver à dona da lanchonete, que também aguarda a volta de um velho amor.

As garotas românticas do título brasileiro são as duas irmãs, Deneuve e Dorléac, bailarina e pianista, a certa altura levadas a encenar um show no meio da mesma praça. Filhas da dona da lanchonete, ocupam o lugar de outras duas garotas que decidiram fugir com dois marinheiros em passagem por Rochefort.

Demy não perde o controle em momento algum. O filme tem cores magníficas e reproduz um universo de sonho incomum ao cinema dos jovens cineastas da nouvelle vague, movimento que se perderia com a politização cada vez mais flagrante à reboque dos protestos envolvendo a Cinemateca Francesa, com a saída de Langlois; da proibição de A Religiosa (de outro Jacques, o Rivette); e, sobretudo, do Maio de 68.

Nesse meio, Duas Garotas Românticas surge deslocado. Um filme que prefere o passado, as histórias de amor e destino que o cinema clássico tanto contou. Em uma pequena cidade apaixonante com belas meninas, rapazes atrevidos, lanchonetes aconchegantes, uma quermesse onde todos se encontram.

(Les demoiselles de Rochefort, Jacques Demy, 1967)

Nota: ★★★★☆

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

Veja também:
No Mundo do Cinema, de Peter Bogdanovich

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