No Mundo do Cinema, de Peter Bogdanovich

A imagem prescinde a palavra. Para provar isso, Peter Bogdanovich cria uma sequência interessante na abertura de No Mundo do Cinema: em um tribunal, o advogado prepara seus melhores argumentos para defender um homem acusado de agredir a mulher. Quando essa mulher aparece, enfaixada dos pés à cabeça, toda e qualquer palavra deixa de fazer sentido. A imagem impõe-se. O advogado desiste do caso na mesma hora.

Em seguida – e isso será comum o filme todo -, Bogdanovich leva-nos ao universo da comédia pastelão: no cinema dos primórdios ao qual seu filme-homenagem aponta, tudo é ação, correria, golpes, estruturas postas para o alto, socos e pontapés. A forma alude à forma: é o cinema no nascedouro, ato físico, comédia indolor, reino de expressões e seres de corpo inteiro, conjunto de cenários que desmorona ao menor empurrão.

Nos nickelodeons, ou seja, nos pequenos cinemas em que se pagava centavos para uma experiência de diversão curta, imperavam filmes de poucos rolos. Na mesma época, início do século 20, grandes produtores de cinema perseguiam os pequenos, que não faziam parte do truste que dominava as patentes relacionadas a câmeras e películas.

A questão é histórica: Thomas Edison, o famoso inventor, passou a solicitar patentes em seu nome e obrigar outras produtoras a lhe pagar pelo uso desses equipamentos. Mais tarde, depois de alguma briga em tribunais, Edison e outras produtoras entraram em um acordo e formaram a Motion Picture Patents Company (MPPC). No entanto, faltavam os pequenos.

No Mundo do Cinema mostra um pouco dessa perseguição e como algumas pequenas produtoras tinham de fugir para outros estados para seguir filmando. Bogdanovich aproveita-se desse clima e dessa época e os casa à nostalgia e à impressão constante do tempo perdido de A Última Sessão de Cinema e Lua de Papel.

Nesta que é sua homenagem maior à sétima arte, o realizador rende-se mais ao segundo do que ao primeiro, e recorre novamente a Ryan e Tatum O’Neal, pai e filha, entre a fotografia em preto e branco e aquele universo de roupas rasgadas em acidentes, bondes abarrotados, despedidas em trens, de portas giratórias que travam com gente dentro – e que travam um diálogo – e teatros que servem a espetáculos que louvam a Ku Klux Klan.

O lado podre da história nunca suplanta a leveza. Bogdanovich é um apaixonado pelo passado. Que fique claro: por seu passado. O realizador põe os atores para servirem aos bastidores de um momento histórico de conflitos, à beira da solidificação de uma linguagem, ao mesmo tempo que faz deles o passado. De novo, a forma alude à forma.

Não é comum algo do tipo. Ed Wood, de Tim Burton, e Mank, de David Fincher, aproximam-se do feito. O Artista, de Michel Hazanavicius, vai ainda mais longe. No quesito histórico, Bogdanovich prefere um tempo ainda anterior ao retratado nessas obras, anterior a seus heróis Ford e Hawks, o cinema de poucos rolos e o que celebrava Griffith.

O melhor exemplo das misturas propostas – entre a nostalgia e a pretensa história bruta posta na tela, com todas suas imprecisões – pode ser visto no momento em que as personagens de O Mundo do Cinema estão na sessão de estreia de O Nascimento de uma Nação. É o marco zero de outro momento. Bogdanovic capta seus olhares. As personagens não acreditam no que veem: um filme longo demais, um espetáculo que não visava o escapismo.

Não estranha que o realizador veja nessa passagem um tanto de avanço e um punhado de perdas. Um cinema feito de improviso, de histórias elaboradas com rapidez e filmagens em qualquer lugar possível dá espaço a um espetáculo alimentado a grandes cenários, adornos de luxo, precisão histórica e paciência do espectador adulto.

O protagonista de Ryan O’Neal é o advogado que se transforma em diretor de cinema, um homem de palavras convertido no de imagens. Nas tantas curvas e pontas soltas que depois se unem, ele passará por provações: a falta de dinheiro do produtor para pagar atores, a dificuldade de fazer o cronograma caber no roteiro (as cinco páginas rasgadas, em referência a um episódio ocorrido com Ford), o filme mutilado na montagem, entre outras.

O mesmo Ford deixa um ensinamento a Bogdanovich, que aqui o explora: as melhores coisas no cinema ocorrem por acidente. Em determinado momento, quando um dos atores (Burt Reynolds) vê-se em um balão solto pelo ar, a equipe de filmagem passa a persegui-lo. A filmagem não para. Uma bela moça (Jane Hitchcock) – que flerta com as personagens de O’Neal e Reynolds – está amarrada ao mesmo balão, que termina sobre um trem. A locomotiva segue viagem e, sobre ela, no balão, o casal beija-se. É o final perfeito para uma história de amor – o final perfeito, fora do roteiro, ao público dos nickelodeons.

(Nickelodeon, Peter Bogdanovich, 1976)

Nota: ★★★★☆

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

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