Odeio essa Mulher, de Tony Richardson

O feirante interpretado por Richard Burton, Jimmy Porter, está sempre pronto para armar as garras – ou os verbos. Fala com intensidade, eleva o tom, retira palavras difíceis. Um letrado que diz, a certa altura, e não duvidamos, que poderia conceber um livro como em um estado de choque – como labaredas a metros de altura.

Pronto para atacar sua companheira – que ama e odeia ao mesmo tempo, que permite que fuja para depois voltar, a quem não esconde seus sentimentos e, para nossa surpresa, entre tantas, a quem recorre, de repente, com palavras estranhamente ternas. Sabe, ao longo de Odeio essa Mulher, como se confessar a ela e recuperar seu carinho.

Mesmo com tanta fúria e teatralidade, sentimos seus instintos reais, sua redoma possível: com Burton, estamos no campo do exagero, mas estamos, ainda mais, à frente de um ser humano que sabe regredir aos sinais do homem comum que ele não suporta, do vendedor de rua ao qual foi legado, às vezes ao trompetista que comunica seu amor e desespero melhor quando feito pelo instrumento musical.

Depois de algumas brigas com a companheira Alison (Mary Ure), Jimmy volta para casa e reconhece seu erro. Confessa-se. Entendemos melhor o que o molda, ainda que não possamos aprová-lo. E ele tampouco busca aprovação. Para Alison, diz que não há um só dia em que não a deseja enquanto a assiste fazer coisas banais, como passar roupa. Não suporta se ver seduzido pela banalidade dela, e de tudo ao redor. 

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“O problema é que nos acostumamos com as pessoas. Até suas trivialidades tornam-se indispensáveis. Indispensáveis… e um pouco misteriosas”, afirma o protagonista, que depois abraça a mulher com quem é casada, a mulher que está grávida e ainda não conseguiu juntar forças para lhe dar a notícia. Em seguida, novamente sintonizado, o casal faz brincadeiras: ele imita um urso, ela um esquilo. Brincam para escapar do estranho ódio que, de tempos em tempos, ou todo dia, alinha-se ao cotidiano.

O diretor Tony Richardson dá a Burton um palco. Ora ou outra a rua. É a figura central desta instigante adaptação da peça de John Osborne. Ao lado de Almas em Leilão, é um dos filmes que marcam a renovação do cinema britânico, a nova onda de jovens diretores como Richardson, Karel Reisz, Lindsay Anderson e Ken Loach.

Nesse cinema impera quase sempre o desespero das classes baixas da Inglaterra dos anos 50, dos trabalhadores do chão de fábrica e todo tipo de gente simples e incorreta que foge a bares e amores passageiros, que não se furta das traições e quer se dar bem. Gente que sonha acordada e não raro termina na sarjeta.

Não estranha que Jimmy odeie a normalidade. Suas confissões ecoam toda uma geração de rapazes e meninas deixados para trás. Em todos esses filmes, a começar por Almas em Leilão e Odeio essa Mulher, a ideia é dar voz e alma aos derrotados, aos covardes que correm a uma estação de trem na esperança de fugir e não conseguem.

A certa altura, Alison recebe em seu pequeno apartamento uma amiga, a atriz Helena (Claire Bloom). Como todos os outros, ela não suporta a maneira como Jimmy dirige-se à mulher, sendo ele uma espécie de Stanley Kowalski britânico, um pouco mais culto, figura inegavelmente misógina que precisa descontar na companheira todas as suas frustrações que, para nós, pouco a pouco ficam mais claras.

Para a amiga, Alison explica por que eles brincam de urso e esquilo: “É nossa maneira de fugir de tudo. Uma espécie de sinfonia boba para pessoas que já não suportam a dor de serem humanas”. Quando Alison vai embora, Helena assume seu lugar. A nova companheira de Jimmy entra em seu círculo de explosões e brincadeiras, suposta aventura de gente grande que só chega ao fim quando a outra ousa retornar.

Entre idas e vindas, Richardson e Osborne apresentam a história paralela – não menos importante – de um imigrante hindu que monta uma barraca na mesma feira em que Jimmy trabalha. Chama-se Kapoor (S.P. Kapoor) e, para o desespero de outros vendedores, consegue produtos por preços melhores. Mais tarde, seus concorrentes, em conluio com um fiscal (Donald Pleasence), conseguem retirar sua licença.

Ao contrário de Jimmy, Kapoor é um estrangeiro legítimo; o protagonista é o estrangeiro em seu próprio país: de diferentes formas, ambos se veem rejeitados. O hindu expõe a sutileza e a ponderação que ao outro faltam; é a consciência da derrota – o sentimento de não fazer parte – que Jimmy nunca poderá aceitar.

(Look Back in Anger, Tony Richardson, 1959)

Nota: ★★★★☆

AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

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