Petra e Peter, Fassbinder e Ozon

Sete anos após dirigir As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, Rainer Werner Fassbinder lançou uma curiosa dedicatória em A Terceira Geração: “A um verdadeiro amor – o que vale dizer, talvez: a ninguém?”. O diretor indicava que não é possível amar alguém de maneira verdadeira, ou que ninguém com quem se envolveu até então era digno desse amor.

Talvez o amor seja mesmo uma trapaça. A dedicatória fez-me voltar imediatamente a Petra von Kant, um de seus filmes mais tristes, certamente o mais claustrofóbico, aquele que mais aproxima a decadência (os espaços) da sofisticação (o texto). Vê-lo depois de Peter von Kant, de François Ozon, é constatar até alguma vulgaridade no primeiro.

Não que Ozon não consiga fazer uma boa homenagem. Ele transforma Petra em Fassbinder, o que faz todo o sentido: o grande realizador alemão, como nos lembra o biógrafo Robert Katz, fez uma peça e depois um filme cuja história transexualiza em um caso de amor lésbico a relação de Rainer com o ator Günther Kaufmann, o protagonista de Whitty

Na tela, Fassbinder chama-se Peter von Kant. A estilista famosa (Margit Carstensen) é agora um cineasta famoso (Denis Ménochet). Sua ajudante sem fala, Marlene (Irm Hermann), torna-se o menino de bigode Karl (Stefan Crepon). A amante Karin (Hanna Schygulla) dá lugar a um ragazzo pasoliniano, semelhante a Ninetto Davoli, cabelos cheios, jeito de moleque, propositalmente angelical, Amir Ben Salem (Khalil Ben Gharbia).

RECEBA NOSSAS ATUALIZAÇÕES: Facebook / Telegram / Letterboxd

Amir tem o mesmo sobrenome de El Hedi Ben Salem, um dos homens que Fassbinder amou e a quem deu algumas personagens no cinema, a mais famosa delas o protagonista de O Medo Devora a Alma. Todas essas aproximações são formas de Ozon levar-nos a ver Fassbinder – não só o amor destrutivo que o mesmo levou para Petra von Kant, a forma mais sofisticada possível de se fazer enxergar.

Na versão de Ozon, o excesso de brilho denuncia um cenário falso em sua beleza proposital, nas muitas luzes que emanam de fora, no cenário em que a árvore de folhas amareladas e a aparência de uma vizinhança tranquila, em um dia tranquilo, levam-nos a pensar nos melodramas de Douglas Sirk, realizador que Fassbinder cultuava.

Fassbinder fez melhor com menos: seus cenários parecem um armário velho e abafado, os figurinos assemelham-se a peças do antigo Egito que se pretendiam modernas e nasceram datadas. Todo o efeito visual decadente é denunciado. O quarto é quase um porão no qual uma artista vive seus dias de dor, por amar e não ser correspondida.

A primeira vítima do amor é quem ama. Petra ou Peter. Eles amam um pouco mais do que figuras belas: amam em Karin e Amir um enigma, um parasita que se oferece em sexo e não se ressente de dizer o que faz e o que pensa, que primeiro se apresenta como figura ingênua em busca de uma oportunidade. No jogo de espelhos de Ozon, Amir escancara essa penetração com jeito bobo, sua maneira de brincar com a vítima, o bonachão que chora e explode pelo ragazzo; na obra-prima de Fassbinder, os diálogos cortantes, somados à contenção dos movimentos, dão-nos o que há de mais cruel nesse jogo: Karin só existe porque Petra existe e ama, e ainda assim ela é capaz de deixar a protagonista ainda mais enclausurada que no início.

Ainda que tenha seus acertos, que conte com um ator forte à frente e a atriz de vários filmes de Fassbinder no papel da mãe de Peter (Schygulla), o trabalho de Ozon faz parecer que o protagonista ainda pode sobreviver amando o menino e que sua fonte de nutrição – a projeção do filme com o garoto na tela – permitirá que ele, o artista, continue por ali. Aquela mesma fonte é o que sobrou de seu objeto de desejo: uma encenação.

Com Petra temos outra sensação. Fassbinder não oferece saída. Sua história envolvendo um amor dependente e destrutivo é fácil de prever: ela toda está nos olhos de Marlene, a criada muda, a mulher que assiste à derrocada da patroa que ama. No filme todo ela parece esperar algo, um gesto, uma passagem, uma simples demonstração de afeto, e nos leva a enxergar, ainda cedo, o que é sofrer pelo amor não correspondido.

(Die bitteren Tränen der Petra von Kant, Rainer Werner Fassbinder, 1972)
(Idem, François Ozon, 2022)

Notas:
As Lágrimas Amargas de Petra von Kant: ★★★★★⤴
Peter von Kant: ★★★☆☆

AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

Imagem do cabeçalho: As Lágrimas Amargas de Petra von Kant

Veja também:
O Desespero de Veronika Voss, de Rainer Werner Fassbinder

Deixe um comentário