As fotografias de Luc Delahaye em Código Desconhecido

Código Desconhecido é um filme sobre a precisão do espírito, sobre a exatidão do corte e sobre o mistério da imagem como resíduo da vida. Sobre a montagem como encontro com a vida e sua ruptura e reafirmação pelo que se ausenta. Essa vontade de história construída sobre ela mesma e tonificada como interrupção e política dos detalhes. A busca do tempo como carne do cinema. Haneke nos fala da imagem operatória, quando ela mesma perdeu sua própria potência: sua potência de exceção, de sintoma, de protesto em ato. A imagem é um operador temporal de sobrevivências – portadora a esse título de uma potência política relativa a nosso passado como a nossa atualidade integral; logo, a nosso futuro. As imagens estão lá para fazer reaparecer ou transparecer algum resto, vestígio ou sobrevivência e, ainda, fazer-nos pensar o mundo contemporâneo procurando as potências do devir-imagem.

Não seria por outra razão a presença do ensaio fotográfico, L’autre, de Luc Delahaye como fulcro de Código Desconhecido. De 1995 a 1997, o fotojornalista francês teria cruzado as linhas Porte Dauphine-Nação d’Orléans até Porte de Clignancourt para fotografar sem o seu conhecimento, os usuários do metrô. Entrava em um carro, a câmera ao redor do pescoço como a arma do crime, disparador escondido no bolso do casaco, o som da porta cobrindo o clique da câmera. Não procurava expressão em seus rostos; declara. Ele só estava interessado no protocolo muito rigoroso que tinha definido para tornar nítido o enquadramento, a luz. Este trabalho fotográfico é o objeto de um dispositivo meticuloso e preciso que engendra uma perspectiva analítica mais do que mimética do mundo. Se há o pressuposto de que o fotojornalismo opera objetivando a história, com base na noção de instantâneo da realidade, Delahaye, ao contrário, parte do pressuposto de que a fotografia é configuração de espaço público, portanto partilha do sensível e de olhar vernacular. Nesse sentido, o fotógrafo se converte em cronista da realidade, opera a inscrição estética de um fato histórico ou vestígio de acontecimento. A atribuição para tal exercício por parte do fotojornalista é dada pela relação que ele vai estabelecer com a história dessa fotografia, desse meio.

Walker Evans fez entre 1938 e 1941, um trabalho fotográfico semelhante intitulado The Passengers. Ao contrário de Walker Evans, em Luc Delahaye há uma lógica do início ao fim do projeto. Nenhuma de suas imagens em sua singularidade sugere que é um projeto fotográfico, artístico ou uma obra, somente a iconografia, o processo de criação de imagens e do discurso que a acompanha, muda a nossa recepção de suas fotografias. No discurso de Luc Delahaye é interessante notar o termo “protocolo”, o que distancia sua abordagem do fotojornalista que está no imediatismo com o assunto. A partir desta série de fotografias, Luc Delahaye tem mostrado que combina perfeitamente o imediatismo do fotojornalismo na frente de seu próprio assunto e uma abordagem fotográfica afetiva que pode ser perpetuada ao longo da duração de uma série de fotografias. Ele atravessa as fronteiras do fotojornalismo que não pode facilmente encontrar o seu lugar na mídia. Talvez, uma abordagem híbrida da fotografia que ecoa na arte contemporânea pelas preocupações e problemas comuns. O fotógrafo colocou sua arte a serviço de uma observação sociológica, para obter a expressão dos sujeitos, na qualidade das imagens a tomar, especialmente em como os personagens são enquadrados e na captura dos seus olhares. O objetivo não teria sido alcançado se o fotógrafo tivesse agido no aberto, se ele não tivesse “roubado” essas imagens, não para o seu uso comercial e mercantil, mas na perspectiva de fornecer uma prova artística e sociológica sobre o comportamento humano, apoiado pela análise de um filósofo e sociólogo co-signatário do livro, Jean Baudrillard. Dito de outro modo: o ensaio fotográfico de Luc Delahaye, um fotojornalismo dos vestígios, descontextualiza o documento fazendo dele lugar intermediário, de constante negociação entre o discurso científico e artístico; que opera na sutura entre imagem (afetiva) e interrupção (crítica).

Danusa Depes Portas, pesquisadora, diretora e roteirista. Trecho do ensaio crítico “Michael Haneke e a récita das sobrevivências”, no catálogo da mostra A Imagem e o Incômodo: o Cinema de Michael Haneke (Caixa Cultural, pgs. 253-255).

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Fotos na montagem do cabeçalho: L’autre, de Luc Delahaye.

Imagem abaixo: cena do filme Código Desconhecido, na qual o ator Thierry Neuvic “interpreta” Delahaye e “rouba” imagens de pessoas no metrô.

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