Tela crua, aspecto deteriorado. Frente e fundo são os mesmos. Todo um universo de pedras, uma poluição visual feita de destroços. Cenário de guerra, ou pós-guerra. Em Alemanha, Ano Zero, o realismo de Roberto Rossellini esmaga-nos com tudo o que revela e insinua, com tudo o que está lá para ser captado, colhido entre o que sobrou.
O foco recai sobre a vida na Alemanha, o lugar de quem foi o inimigo em Roma, Cidade Aberta e Paisà. Necessário, diz o cineasta, passar ao outro lado, encontrar o drama do diferente e mostrar sua semelhança, o espelho que alguns poderiam negar por xenofobia. Não é o caso de Rossellini. Seu filme abre-se ao humano à medida que se distancia dele.
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O realismo de Rossellini, como bem observou André Bazin sobre Paisà, baseia-se no fato, não no plano. Talvez seja a grande lição deixada pelo mestre italiano, pai do neorrealismo, como bem observou o grande teórico francês: não se busca, nesse cinema, o “ponto de vista abstrato sobre a realidade que se analisa”, mas o “fragmento de realidade bruta”.
O “fato”, ou o “fragmento”, é “por si só múltiplo e equívoco, cujo ‘sentido’ sobressai somente a posteriori, graças a outros ‘fatos’ entre os quais a mente estabelece relações. Sem dúvida o diretor escolheu esses ‘fatos’, mas respeitando sua integridade de ‘fato’”, continua Bazin, para quem o universo deve ser revelado sem imagens que indiquem uma abstração criada à força, “um signo isolado a priori pela câmera”, expondo a natureza abertamente manipuladora de um realizador – estilo ao qual Rossellini não se filia.
Nem por isso a aparente distância dada por Rossellini dispensa humanidade, drama em sentido maior. Alemanha, Ano Zero acompanha uma vítima, um sobrevivente, o menino que tem pai, irmãos e casa, que tem de trabalhar para ajudar a família, que circula pelos escombros e descobre que não tem nada. É verdade que não se trata de um herói à maneira das personagens de Roma, Cidade Aberta ou Europa ‘51 – sem consciência social e total clareza sobre o verdadeiro problema que a cerca e a atinge, imatura como é.
O filme é sobre a anulação da jornada – por isso mesmo sobre a contestação do drama clássico (de altos e baixos, obstáculos, causas e consequências). Na ótica neorrealista de Rossellini está uma luta natural e sua iminente derrota frente à pobreza da Alemanha pós-guerra, na qual é mais vantajoso estar no hospital, com a garantia de três refeições ao dia, do que fora, a depender de um cartão do Estado para se alimentar.
No início do filme, a criança é vista entre várias pessoas em terreno aberto. Cava túmulos e tenta ganhar alguns trocados. Finge ser mais velha do que é, não engana, e logo é expulsa dali. Não cabe nessa sociedade em que não é grande o suficiente para trabalhar, para ser levado a sério, e ao mesmo tempo é “pequeno demais” para ficar em casa sem fazer nada.
Do grupo da abertura sai esse menino, Edmund (Edmund Moeschke), “escolhido” pela câmera, ao natural, como se em campo aberto, no cemitério, Rossellini buscasse sua personagem, seu condutor. Em seguida, está entre os outros, nas ruas movimentadas, para assistir ao desespero de alguns por um pedaço da carne do cavalo morto.
Acompanha, depois, os trambiques de outros garotos mais velhos, das gangues que surgiam entre a pobreza e a necessidade de sobreviver. Catapultado a esse círculo, Edmund experimenta o crime, vê sua família deteriorar e percebe nos outros a falta de valor à vida.
Rossellini, à cata do “fato”, aposta no movimento, no suposto acidente. Resume a essência do neorrealismo italiano: o real pelo tempo, pela aparência do nada, a anti-ação que se consome nos dez ou 12 minutos finais. O clímax é justamente a imposição do real, ou do nada, dos fatos que fazem a criança apelar à pior das ações, por isso à falta de sentido.
O discurso de Hitler volta na sequência em que o menino tenta vender um gramofone. A voz do líder nazista casa-se às imagens dos prédios destruídos. Em um desses velhos palácios deteriorados ainda se encontram, escondidos, os restos de uma elite que se recusa a enxergar o fim, com seus “médicos” e seres estranhos, oportunistas e pedófilos.
Para François Truffaut, apenas Jean Vigo, antes, havia tratado a infância de forma semelhante, sem ternura. A obra de Rossellini – terceira parte da chamada Trilogia da Guerra, sem dúvida a menos lembrada – carrega no título o nome de um país e, para este, o início de uma nova era em que o drama de um é o drama de todos.
(Germania anno zero, Roberto Rossellini, 1948)
Nota: ★★★★★
AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

Veja também:
Roma, Cidade Aberta, de Roberto Rossellini