O que significa a lista da Sight and Sound

Listas devem ser compreendidas como reflexos do gosto de um grupo em determinada época. “Espírito” de seu tempo, sem dúvida, o que ajuda a compreender a presença de Jeanne Dielman no topo da badalada lista da Sight and Sound, a publicação britânica que, a cada dez anos, pergunta a críticos e especialistas quais os seus dez filmes favoritos e, a partir de uma compilação com milhares de opiniões, publica seu ranking de 100 mais.

E por que Jeanne Dielman expressa o “espírito” do nosso tempo? Porque, primeiro, é um filme dirigido por uma mulher, a belga Chantal Akerman. Porque é um filme feminista e porque, ouso dizer, é anticinema – o que não quer dizer que seja bom ou ruim. Seu filme foi lançado nos anos 1970 e, em resumo, aborda o cotidiano de uma mulher: tudo e nada na tela, longas sequências em que sua atriz, Delphine Seyrig, prepara a comida, arruma a casa, mantém os afazeres diários, recebe o filho, mais tarde um homem.

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Anticinema, penso, porque joga fora da estrutura narrativa à qual nós, ao longo dos anos, aprendemos a nos ligar. Raccord sobre o eixo, plano/contra-plano, movimentos bruscos, interpretações carregadas – nada disso faz parte de Jeanne Dielman. Um cinema nem de prosa nem de poesia. Um cinema que nos pede paciência e, a partir da absorção do tempo, de seu alargamento às raias do insuportável, torna-se a expressão mais completa possível do que é a vida de uma mulher comum, sem retoques.

Um grande filme, sem dúvida. Se merece a primeira posição é outra história. Deixo para cada um fazer suas escolhas e suas listas. A da Sight and Sound revela-nos um tempo em que ousadias estéticas podem superar fórmulas que por décadas conquistaram cinéfilos – como Cidadão Kane, Um Corpo que Cai, Rastros de Ódio, ainda que estejam na lista e bem posicionados – e perceber um movimento feminino ou fora do eixo Estados Unidos-Europa – para coroar não apenas Jeanne Dielman, mas outras pérolas como Bom Trabalho, Meshes of the Afternoon, As Pequenas Margaridas, Touki Bouki e A Negra De….

Como todo lista, sentimos falta de filmes extraordinários e estranhamos a presença de obras recentes como Parasita e Retrato de uma Jovem em Chamas. Nenhum filme de Buñuel, nenhum de Resnais, nenhum de Cassavetes, nenhum de Hawks, nenhum de Glauber Rocha. Por sinal, não encontrei nenhum filme latino-americano entre os 100 escolhidos.

Alguns dos favoritos de todo mundo continuam por lá: Cidadão Kane, que por décadas era o número um da Sight and Sound caiu para a segunda posição em 2012, atrás de Um Corpo que Cai, e agora figura na terceira posição. A Regra do Jogo e Aurora seguem fortes entre os 20 mais. As obras-primas de Ozu, Kurosawa, Tarkovski e Fritz Lang também estão distribuídas ao longo da lista, um bom recorte para quem quer descobrir filmes.

Além da lista dos críticos, a Sight and Sound faz um compilado com votos de cineastas. Nesse ranking, ocupa o topo 2001: Uma Odisseia no Espaço, à frente de Cidadão Kane, O Poderoso Chefão e, empatado em quarto lugar com Era uma Vez em Tóquio, de novo Jeanne Dielman. Esse ranking oferece compensações, filmes marcantes que sumiram da relação dos críticos. Entre eles, Um Inverno de Sangue em Veneza, Lawrence da Arábia, A Conversação e Chinatown – todos entre os meus favoritos de sempre.

Publicado originalmente no Jornal de Jundiaí em 7 de dezembro de 2022.

Confira aqui a lista completa da Sight and Sound.

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

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Um comentário sobre “O que significa a lista da Sight and Sound

  1. Prezado Rafael,

    realmente, surpreende a última lista em relação à de 2012. Constar obras recentes como as por você citadas, assim como “Corra!”, não encontra muito amparo sob qualquer ângulo que se examine. Quando da divulgação da lista de 2012, uma das explicações para a ascensão de “Vertigo” ao 1º lugar foi pelo gradativo rejuvenescimento dos votantes ao longo dos anos. Naquela constavam apenas 2 filmes realizados após os anos 2.000 (Cidade dos Sonhos e Amor à Flor da Pele), acertadamente a meu ver, por se tratarem de 2 obras-primas, que agora aparecem entre os 10 primeiros. Enfim, parece que o “maistream” quis dar uma sacudida nas coisas. Alguém já falou que o cinema como arte acabou nos anos 50, eu não sou tão radical, acho que conseguiu chegar até os anos 70 (rsrs). No mais, parabéns pelas sempre qualificadas análises. Abraços!

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