O Bandido Giuliano, por Sérgio Augusto

Premiado no Festival de Berlim de 1962 (“melhor direção”), Salvatore Giuliano forma, ao lado de I Nuovi Angeli, o pelotão de frente do melhor cinema italiano da atualidade. Constitui uma das empresas mais corajosas daquele cinema e uma valiosa contribuição ao conhecimento não só da Itália mas também, e principalmente, de suas mais graves questões: o problema do separatismo, movimento que comoveu a miserável Sicília no fim da Segunda Grande Guerra; o problema da incapacidade do Estado em impor o respeito à lei e seus apelos a métodos heterodoxos e alianças sombrias; o problema da rivalidade entre as várias forças representativas do Estado; o problema do poder subterrâneo da Máfia e suas ramificações entre os políticos. Em meio a esse complexo de problemas, começa e termina a trajetória de Giuliano, com suas aparentes contradições, sua obscuridade, seus ainda insolúveis mistérios.

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Salvatore Giuliano foi um bandoleiro siciliano bastante célebre na Itália. Pouco depois do desembarque dos aliados, foi ele nomeado coronel pelos autonomistas desejosos por separar a ilha do continente. Após a destruição política desse movimento, suas sequelas ganharam as montanhas e lá permaneceram durante anos, com o apoio e ajuda de parte da população e da Máfia. Em circunstâncias por longo tempo obscuras, foi Giuliano delatado a alguns policiais italianos (rivais uns dos outros) por seu braço-direito Gaspare Pisciotta. Abateram-no e com seu cadáver organizaram uma macabra encenação. Depois de longo e dramático processo, seu denunciador foi envenenado na prisão.

A exemplo de I Nuovi Angeli (Anjos Modernos), Salvatore Giuliano visa a fornecer a ilusão da realidade bruta através da reconstituição quase completa dos fatos. Como bem reparou um crítico europeu, “estamos nos antípodas da concepção primordial do neorrealismo”. O citado crítico vai mais longe ao observar que a fita “é uma montagem de atualidades sem atualidades”. O resultado é revelador, isto é o que importa, independentemente de seu processo.

Segundo o realizador Francesco Rosi faz questão de frisar, “Salvatore Giuliano não é absolutamente um filme biográfico, mas um discurso sobre o cadáver de Júlio César”. Outro crítico europeu vai mais adiante chamando-o de “Cidadão Kane a serviço de uma maiêutica de esquerda”. Não se vê o herói senão morto, em um relato onde todo o cuidado é tomado para romper-se a cronologia a qualquer custo. Sem se preocupar com fusões, a ação passa de 1950 a 1954, ou de 1944 a 1948, evocando os acontecimentos outrora retumbantes de que o povo italiano ainda se recorda. O verdadeiro assunto do filme é um país infeliz, oprimido, desgarrado e revoltado. Não se exalta nem se deprecia Giuliano; antes, mostra-se o bandoleiro como um fruto de sua terra, das condições sociais e políticas dos anos 40.

A frieza documental das primeiras cenas a mostrarem as formalidades legais em face da presença do corpo do bandido (que a polícia acredita ter assassinado, mas que, na realidade, foi morto por seu lugar-tenente); a prolongada excitação da busca aos homens da cidade, a tumultuosa reconstituição do julgamento em Viterbo – tudo isso, desde os momentos mais intensos aos dominados pelo documentarismo puro e simples, é governado pelo mesmo espírito: a procura ao fato, o respeito ao valor moral da evidência. Estes fatos circulam em flashbacks cronológicos, mais ou menos como aqueles do Orson Welles de seus primeiros dias, por isso a designação de um crítico europeu que acima citamos. A narrativa em torno de Giuliano transforma-se em mosaico. A liberdade é agressiva, de uma construção desdramatizada, composta de uma série de flashes acerca da atividade, o processo e a morte de Giuliano.

A decupagem de Rosi não procura explicar nada, fornece fatos, detendo-se mais sobre as consequências imediatas do acontecimento do que sobre a sua preparação ou sua realização. Recorre-se aos contornos da existência do personagem sem que essas fugas subtraiam a investigação dos fatos. Rosi chegou a dizer aos censores que sua obra não poderia ser cortada, pois apenas relatava aquilo que os jornais da época noticiaram e o que foi dito em tribunal. Desta forma, os métodos utilizados assemelham-se aos de Eisenstein de O Encouraçado Potemkin, reconstituindo, vinte anos depois, os eventos revolucionários de Odessa.

Os retornos da ação tornam um pouco difícil o relato. A primeira parte é de grande beleza e extrema violência. Um de seus clímaxes é a chegada das tropas que fazem reinar o terror na cidade, com mulheres desesperadas e homens indignados. Outra sequência impressionante: Giuliano e seus sequazes abrindo fogo contra centenas de camponeses, em Portella della Ginestra. Mulheres e crianças foram mortas. Os sobreviventes participaram da reconstituição. A segunda parte, centralizada no processo, desperta menos interesse, principalmente para a plateia estrangeira.

Giuliano é interpretado por um jovem mecânico de Palermo a quem outorgam uma dimensão quase mitológica. Seu rosto só nos é mostrado em detalhe quando ele já está morto. Rosi, porém, não idealiza o bandido. O filme, aliás, não existe exceto com relação ao espectador e para ele, utilizando todas as aprovações do mistério para destruí-lo, analisando-o e arrancando-lhe a verdade. Sob este ponto de vista, Salvatore Giuliano é um filme de libertação intelectual. A impressão deixada no final é de que o bandido era um ditador fascista em estado embrionário.

Não há atores profissionais, salvo os que interpretam o delator e o presidente do tribunal. Houve, contudo, uma preocupação em selecionar a dedo os tipos entre aqueles que viveram os episódios reconstituídos. Valeu-se o cineasta de antigas (e históricas) fotografias. O “cadáver” de Giuliano foi colocado exatamente no pátio onde foi encontrado há treze anos. A velha que chora sobre seu corpo não é sua mãe, mas uma mulher que teve dois de seus filhos assassinados no bando de Salvatore. Os carabineiros e policiais exercem este métier na vida real e muitos até participaram da repressão. Quanto aos habitantes da cidade natal, e último habitat de Salvatore, eles compartilharam das violências e das operações policiais de 1950 e as reviveram com indignada convicção.

Correio da Manhã (14 de março de 1963)

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