Os limites do realismo no cinema de Michelangelo Frammartino

A escuridão sela o fim de cada ato em As Quatro Voltas. As chamas e sua fumaça, no início e no fim, ajudam a dar o tom amargo a um filme mais otimista do que parece, ou um filme que, através de seu autor, Michelangelo Frammartino, não quer provocar em nós algum reconforto além da beleza que projeta em suas longas sequências.

A cada ato um novo começo, a parte de um ciclo, o caminho da alma que passa do velho senhor ao pequeno cabrito, do animal à natureza (simbolizada pela grande árvore usada em uma festa popular, em pequena cidade), depois aos pedaços de madeira levados ao forno que tudo queima, do qual ouvimos o estalar da brasa, onde nasce o carvão.

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Em As Quatro Voltas, Frammartino expõe um ciclo. Em seu trabalho seguinte, mais de dez anos depois, Il Buco, somos levados ao caminho das profundezas, ao paralelo entre a descoberta da parte mais baixa de uma caverna, com desbravadores por cada pequena passagem estreita, e o fim da vida de um velho homem, sua doença, sua morte.

Se no primeiro temos a esperança do recomeço pela nova parte, ao passo que o início é o fim, no segundo fica a impressão de que a natureza – a despeito de sua renovação constante – tem seu limite. Exploramos cavernas profundas e sabemos poucos sobre nós; criamos grandes prédios para ver o mundo do alto e não enxergamos o que há abaixo de nossos pés, os mundos escondidos, as passagens secretas.

Nesses dois grandes filmes, Frammartino explora os limites do realismo: acreditamos assistir a documentários enquanto muito do que vemos é pura recriação. O diretor toma o real e o molda ao seu gosto, estende os planos e evita – mas não extingue – o close e o plano-detalhe. Ora há a grande paisagem, as partículas em movimento de um vasto universo como um quadro pintado; ora há as dobras da carne dos velhos homens que continuam a perseguir suas rotinas, suas culturas, pastores e montanheses pela paisagem.

Em depoimento para o making-of de As Quatro Voltas, Frammartino observa que o cinema sempre usa o ser humano como centro da narrativa. “Estamos tentando fazer um filme onde a narrativa não é humana”, afirma. E ainda que não se despregue totalmente do homem e de suas ações, o cineasta mostra, sobretudo em As Quatro Voltas, que pode seguir sem ele – ou sem sua psicologia. Na natureza há uma alma que ultrapassa nossa voz interior.

Os artifícios da ficção dão vida à forma do documentário. Outra vez vale dar uma olhada no making-of citado: para a sequência mais importante, a da passagem da procissão seguida do acidente com a caminhonete sem freio, Frammartino adotou um ensaio meticuloso, incluindo um cão treinado para ser o grande personagem desse momento.

O resultado é não menos que mágico: o cão late para algumas pessoas, a procissão passa, o cão retira a pedra que segura o veículo, que desce em direção à casa do velho senhor proprietário das cabras. A câmera não nos deixa ver a batida e, em movimento panorâmico, volta-se ao outro lado da estrada. O cinema, segundo Frammartino, opera também pela exclusão, pela imaginação, pela necessidade de completude, pelo fora de campo.

A primeira imagem de Il Buco é a da “boca” da caverna de dentro para fora, como um canal de vida que se abre primeiro à luz, depois aos animais que observam o forame. Vemos antes de dentro como se víssemos o próprio instante de um nascimento, o espaço rochoso, profundo, que depois será explorado pelo grupo de pesquisadores.

O realismo de Frammartino não é bressoniano, ou seja, não precisa exatamente da ligação entre imagens para resultar em uma mecânica dotada de significados. Pode ser justamente o oposto: suas imagens têm vida própria e às vezes abrem possibilidades de ligação, como na imagem do nascimento do cabrito após a escuridão do túmulo onde é colocado o caixão em As Quatro Voltas, ou na montagem paralela entre a exploração das partes mais baixas da caverna e o atendimento médico dado ao homem moribundo em Il Buco.

Mais radical que Bresson, Frammartino retira praticamente tudo de seus atores. Adere, na maior parte do tempo, a figurantes, pessoas a serviço de um painel em movimento, seres que pouco conhecemos e aos quais não negamos grande peso. Esse painel conecta-nos à natureza das coisas, à vida como ela é, seja sob um efeito cíclico ou de paralelos, entre rituais que vão da procissão à gincana e o sofrimento inexplicável do cabrito na floresta.

(Le quattro volte, Michelangelo Frammartino, 2010)
(Idem, Michelangelo Frammartino, 2021)

Notas:
As Quatro Voltas: ★★★★★
Il Buco: ★★★★☆

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

Veja também:
O Dia dos Loucos, de Bob Rafelson

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