Meu Tio da América, de Alain Resnais

A gaiola tem dois compartimentos divididos por uma porta. Quando soa o alarme, o rato precisa passar para o outro lado para não levar choques. Mudar de espaço é viver sem dor, em movimento. O rato – como o homem, em suas mais diferentes situações – precisa se movimentar. Diferente do homem, o rato não escolhe; ele apenas age.

As imagens do animal, como tantas outras em Meu Tio da América, levam-nos a pensar em um documentário sobre a ciência – o que filme de Alain Resnais, com roteiro de Jean Gruault, a partir das ideias de Henri Laborit (ele próprio o narrador), não deixa de ser. Para além dessa aparência de estudo científico está a ficção, estão as personagens.

Mas, afinal, do que trata esse filme repleto de misturas, entre documentário e ficção, clássicos e a forma moderna? Explicar a obra conduz-nos ao próprio cinema, a nós mesmos. Ainda que pareça amplo e certamente o seja, esse filme mágico explica um pouco do que somos, tenta abarcar o essencial de nosso comportamento com exemplos na natureza, fala sobre a evolução do cérebro, da memória e do papel do nosso imaginário.

Tudo isso sem perder a linha narrativa no interior de uma história, com três personagens diferentes, de origens e descendências diferentes, um pouco cômicas, que – por coincidência, por necessidade – terão de se encontrar. A relação que travam entre si é fundamental para embarcar nessa teia complexa proposta pelo diretor de Hiroshima, Meu Amor.

Resnais questiona se estamos todos condicionados aos apontamentos científicos apresentados e a determinados mecanismos de convivência social. Ao fim de Meu Tio da América – cujo título reflete o que parece ser uma memória comum às suas três personagens, ou parte de um imaginário comum a cada uma delas -, a resposta não é simples.

Os humanos tendem a encontrar – ou criar – desvios: o homem é o único animal capaz de desenvolver o imaginário, que resulta das experiências de vida e de sua relação com a memória e com as imagens. Resnais, nos primeiros instantes, expõe o nascimento de seu próprio filme, o coração que bate, a frase que fala do homem e sua obra (“a única razão de ser de um ser é ser”) e as imagens que nos remetem ao documentário. O cinema ataca-nos pela diferença, pelo inebriante.

As personagens – que poderiam ser reais, ninguém nega, tamanha a normalidade da comédia – estão condicionadas ao próprio imaginário, à montagem que casa suas vidas a outras imagens e produz novas imagens mentais, significados que caberão a cada um de nós. Uma delas é o camponês René Ragueneau (Gérard Depardieu), que vai para a cidade e passa a trabalhar com tecelagem. Outra, a futura atriz Janine Garnier (Nicole Garcia), descende de uma família de esquerda. Por fim, há o futuro ministro Jean Le Gall (Roger Pierre).

A matéria do cinema é a memória. Para o asfixiado René, o bravo Jean Gabin; para a apaixonada Janine, o classudo Jean Marais; ao insosso Jean, a apaixonante Danielle Darrieux. Não são apenas filmes ou personagens. São memórias, mitos que se conectam às vidas na tela e explicam as intenções de Resnais: dentro do filme há outros filmes, outras memórias.

O cinema é a memória viva do passado. O espaço de seu armazenamento, da impressão de vida em suas representações, personagens, ambientes. O homem é o único animal capaz de realizar um processo imaginário a partir de traços de suas experiências passadas. Em certo sentido, o cinema é um “ser vivo”, uma “memória que age”, dono de um coração pulsante. Arrisco dizer que o estudo – parte realidade, parte ficção – empreendido por Meu Tio na América ajuda-nos a compreender O Ano Passado em Marienbad, filme-memória em estado puro, labirinto sem saída no qual suas personagens não se reconhecem.

Em entrevista à Positif, em 1980, Resnais declarou que seu filme propõe a mistura de dois tipos de narrativa, a científica e a romanesca, e que queria saber “se essa mistura podia criar um universo dramático interessante”. “Podemos dizer que se trata de um filme sobre o sistema nervoso central e o comportamento, mas acompanhado de uma espécie de riso – pois isso pode parecer de uma pretensão louca.”

“O que é fácil para um rato engaiolado é muito difícil para o homem em sociedade”, afirma o narrador. A passagem para o outro compartimento nem sempre estará aberta. Sem caminho, o homem fecha-se em si mesmo: sua inibição consome-o, sua dor pode levá-lo ao suicídio. Os homens não são ratos, ainda que algumas semelhanças causem espanto.

(Mon oncle d’Amérique, Alain Resnais, 1980)

Nota: ★★★★★

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

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