Para “limpar” Gotham City de sua sujeira, dois rapazes órfãos precisam vestir máscaras. É importante se atentar à trajetória e aos meios empregados por cada um deles em Batman, de Matt Reeves. Seus adereços, à primeira vista, soam distantes; aos poucos, essas máscaras passam a representar lados diferentes da mesma moeda.
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O primeiro deles perdeu pai e mãe e, de família rica, pôde continuar vivendo uma vida abastada, com acesso ao mundo e sob alguns códigos que lhe permitiram não ser um completo revolucionário. Ele é Bruce Wayne.
O segundo esteve em um orfanato durante toda a infância e, além de perder a família e seu conforto, deixou de acreditar na justiça em uma cidade, do topo à base, tomada pela corrupção (que chegou inclusive ao seu orfanato). Para ele, não há outro caminho possível senão o do total rompimento. Tornar-se-á o Charada.
A cada um a máscara terá um peso, uma simbologia e, a certa altura dessa história intrincada, até pode ser dispensada por seu usuário. O menino rico veste a máscara para ser algo: primeiro uma vingança, depois uma ideia de justiça; o pobre, para ter peso, ser alguém capaz de colocar a nu como o jogo é jogado pelos poderosos de Gotham City.
Há outra diferença no que resulta dessas máscaras: Batman, o herói, é torto porque é humano, porque vacila, porque ainda leva tombos, porque ainda não saiu totalmente da caverna – como metáfora. Usa a força quando necessário, mas compreende suas responsabilidades e que o extremismo não leva a nada. Ainda tem um sobrenome abaixo da máscara.
Charada baseia-se na máscara sem forma, que cobre qualquer curva da face à exceção dos olhos. Para fora dela, apenas seus óculos, sinal de imperfeição. Sua máscara faz-nos pensar em dor: lembra as utilizadas em sessões de sadomasoquismo ou as de ferro colocadas em prisioneiros ou escravos, como se fossem animais impedidos de morder.
É estranho este mundo às sombras em que duas personagens tão distantes e tão próximas precisam usar máscaras – a natureza do esconderijo, a persona – para se vingar de vilões que não se escondem: mafiosos, policiais, promotores, políticos e todo o tipo de escória que migra de ambientes, do dia à noite, com ternos caros e belos escritórios.
Batman é Bruce Wayne, Bruce Wayne é Batman. Poucos filmes com o mesmo herói minaram tão bem essas distâncias como a adaptação de Reeves e Peter Craig. E não estranha que Charada desmascare o antagonista do qual depende, ao enxergar o homem – e o menino traumatizado pela morte do pai – por baixo da fantasia do morcego.
A essa altura, o vilão deu seu passo mais importante ao mostrar o rosto; a essa altura, fez com que outros, convocados nos esgotos das redes sociais, vestissem máscaras iguais. Se da orfandade nascem essas máscaras, também para outra forma de orfandade – a social, de todos que foram lançados à margem, não representados por um sistema econômico que privilegia apenas alguns – caminha toda uma massa de ressentidos.
Charada é o exemplo perfeito desse casamento entre o americano médio ressentido e o psicopata que precisa jogar, com suas perguntas e respostas, para levar às vítimas seu próprio labirinto. Antes de matá-las, ainda pode, em sua ideia de grandeza, dar-lhes uma chance – como o nazista que deixa de puxar o gatilho e perdoa um judeu.
Paul Dano sabe como interpretar esses tipos, com seu rosto de “menino criado com a avó”, de bochechas salientes, forma infantil. É o perfeito perturbado, fracote, como já vimos antes em Sangue Negro e Os Suspeitos. A ele, só é possível retirar a máscara e encarar Batman quando seu plano todo está arquitetado, quando sua vitória é irreversível.
Robert Pattinson é um mauricinho perturbado que não sabe socializar. É ótimo como um Bruce Wayne que borra o rosto com tinta preta sob os olhos, como se chorasse a cada vez que volta para sua “caverna”. Na cruzada contra os criminosos, ele sempre retorna a si mesmo: ao pai, ao seu sobrenome, à fortuna de donativos que deveriam ir justamente para o orfanato em que estava a criança que mais tarde se converte em vilã.
É o que ocorre quando há corrupção e crise: os pobres são os primeiros afetados; os mais ricos, como Bruce Wayne, ainda podem viver em torres e ver o mundo do alto.
Coringa, de Todd Phillips, também aborda o problema do ressentido. Não nego, de novo, que exista muita perturbação na personagem. Mas há também um tanto de ressentimento em Arthur Fleck, que descobre ser meio-irmão de um certo Bruce Wayne – o rico, o escolhido, o filho que deu certo -, que sonha em ser artista de sucesso, que quer estar na televisão, que ama e acha que é amado pela vizinha de apartamento.
Não são seres assim que preferem ditadores e extremistas, os mesmos que prometem “limpar” a cidade dos vilões de sempre e que o recinto será “grande de novo”? Não são justamente eles que não suportam os hipócritas que evocam valores tradicionais e adoram prostíbulos, comumente apontados como parte do establishment?
Batman tem fundo político. Coringa também. Antes, em Batman: O Cavaleiro das Trevas, de Christopher Nolan, a questão movia-se mais ao terrorismo, ao mundo pós-11 de setembro. Mas a relação do herói e do vilão com suas máscaras é fundamental: enquanto Batman é alguém (Bruce Wayne) e ainda assim precisa esconder sua identidade para combater o crime, o Coringa não é ninguém (não tem identidade) e pode criar uma “máscara real”.
Quer dizer, ele pode apenas borrar o rosto com tinta branca e preta, sem receio de ser reconhecido. Na verdade, ele só é alguém em sua máscara. Na cruzada contra o herói – do qual, como o Charada, diz depender -, ele mostra que o mais impoluto dos seres (Harvey Dent) pode ser autoritário quando lhe retiram o que possui de mais valioso (pode ser o Duas Caras, metade Batman, metade Coringa, confusão que só produz mais violência).
No Batman de Reeves, a colisão das máscaras do herói e do vilão faz com que o protagonista compreenda, ao longo de sua jornada, que não é apenas produto do menino traumatizado pela morte dos pais. Mais ainda, ele é descendente da mesma sociedade que pretende combater, extensão desse espaço às sombras e no qual abunda a orfandade.
(The Batman, Matt Reeves, 2022)
Nota: ★★★☆☆
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)
Veja também:
Nomadland, de Chloé Zhao