Os nômades, argumenta a irmã da protagonista, guardam algo dos pioneiros americanos. É a forma que ela encontra para tentar engrandecer – mesmo que pouco – aqueles que não têm casa e, a bordo de um veículo, viajam pelos Estados Unidos em busca de empregos temporários. O que nos faz retornar aos conflitos no nascedouro dessa mesma nação.
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Explicar o que aconteceu à heroína de Nomadland é tentar entender o que aconteceu a essa nação que tanto propala a vitória das oportunidades e a riqueza. Essa é a história do insucesso, da perda, da fusão à natureza, do homem de volta às origens, à condição de desterrado, não à do selvagem. Para frente, o deserto, a imensidão vista da estrada ou ao fundo das pessoas, na mistura entre céu, sol e nuvens.
Sobram rostos pelo caminho, alguns repetidos, outros de passagem, perdidos na paisagem árida ou gélida; trabalhos braçais, como limpar banheiros, fritar hambúrgueres, empacotar produtos; imóveis abandonados, parcialmente cobertos pela neve, espaços vazios, como os de uma cidade destruída por bárbaros e agora abandonada.
Ainda assim há motivos para sorrir. Fern, sabemos desde o primeiro encontro com ela, não desistirá facilmente. Interpretada com humanidade e força por Frances McDormand, a protagonista não se limita a reclamar ou fazer discursos, a ser a vítima desse espaço de pessoas que maquiam perdas com reencontros e oportunidades de trabalho.
À frente, percebemos, ela não conhece mais vida alguma senão aquela: a mulher que começa fechando uma porta de metal, desempregada após o encerramento dos trabalhos de uma empresa que faliu, sem marido e apenas com a van branca para viver, feita casa, tem na estrada sua reinvenção. Viver para não saber o que encontrar, para não se programar.
O mesmo país que fecha as portas da estabilidade oferece abundante trabalho temporário. É preciso arriscar, aceitar o instinto de sobrevivência – por isso retornar à História da colonização à qual nos remete a irmã de Fern. A involução dessa sociedade é inerente à sua transformação, fruto do capitalismo indiferente às vidas perdidas pelo caminho.
Nomadland é um belo filme sobre se descobrir sozinho. Encontra paralelo fácil, portanto, com o anterior da diretora Chloé Zhao, Domando o Destino, no qual um peão de rodeios machuca a cabeça e não pode mais competir nas arenas. Sua vida desaba de repente, enquanto se divide entre retornar ao que ama e continuar respirando.
Com Fern não é diferente: no fundo, qualquer escolha esconde a única escolha possível: ela precisa seguir em frente, e continuar sorrindo. Quando uma amiga de estrada conta-lhe que está com câncer e tem poucos meses de vida, a protagonista briga com as próprias reações para não transparecer a tragédia. Compreendemos. À frente dela, uma senhora em seus últimos dias, sem uma casa para morrer, sem alguém ao lado para ouvir seus últimos respiros.
O imóvel abandonado que Fern invade no encerramento provavelmente foi sua casa. Ainda antes, circula pela fábrica na qual trabalhou. Os espaços sem vida, frios, dão em boa medida a dimensão da dor de quem foi condenada ao movimento de retorno. A heroína precisa voltar mesmo quando casa não há, mas apenas esqueletos.
A mulher que se explica com pouco recusa-se a ter outro homem em sua vida. Continua casada com o marido morto. Em um momento que ajuda a compreender sua energia, ela caminha sem rumo entre rochedos, feliz, sozinha, e então nos pegamos pensando sobre a origem de tanta felicidade, sobre essa vontade de viver que, na tela, graças à sensibilidade de Chloé Zhao e à onipresença de McDormand, transborda.
(Idem, Chloé Zhao, 2020)
Nota: ★★★★☆
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista; conheça seu trabalho
Veja também:
Domando o Destino, de Chloé Zhao
Um comentário sobre “Nomadland, de Chloé Zhao”