M, o Vampiro de Dusseldorf, de Fritz Lang

Os berros de desespero, ao fim, apontam alguém fora do próprio controle: alguém que se entristece perante os crimes que cometeu e não consegue, ao mesmo tempo, parar de cometê-los. O assassino é tomado por força maior. Apenas um novo crime pode aliviar o anterior, em círculo vicioso, enquanto segue a gritar.

A essa altura, no tribunal de exceção de M, o Vampiro de Dusseldorf, conseguimos ter pena do homem um pouco gordinho, de dentes pequenos e olhos esbugalhados, de sobretudo – como tantos ao frio alemão – e, à primeira vista, acima de qualquer suspeita: solteiro, solitário, residente em um quarto alugado com decoração amigável.

Ao aparente bom vizinho recai toda a dor de um país. Ou antes de uma cidade, de um extrato, do grupo que precisa impor a ele – o monstro – sua maneira de fazer justiça. Aqui, justiçamento. O grupo que ocupa o tribunal de exceção pede sua cabeça. Eis o assassino que ousou cometer o pior dos crimes: matar crianças indefesas.

Naquele mesmo tribunal, como já se disse, o diretor Fritz Lang ousa representar uma sociedade sedenta pelo gesto autoritário, pela solução final a ser aplicada a quem merece. Antes, no assassino de crianças. No interior da fábrica abandonada. Sob os olhares de quem prega a culpa e, no fundo, carrega-a: ali, lembra o chefe da gangue, todos conhecem a lei, todos já foram presos, todos já dormiram em cela fria.

Pagaram muito por muito menos. Agora podem colocar em prática – no esconderijo dessa sociedade quadriculada e aprisionante sob a direção do mestre Lang – seus anseios. É disso que o filme trata: se toda a cidade mais parece uma prisão de janelas e vielas estreitas, corredores para guardas e mendigos, trambiqueiros e ladrões, há de se escapar, para que todos esses jurados – o povo! – possam, antes de a polícia chegar, sentir-se no controle.

Todo poder ao povo, acreditam, por alguns momentos, aquelas pessoas simples. A elas é dado o assassino, o pior deles, também aquele que, em confissão, faz com que enxerguem o pior desse mesmo mundo: pequeno, acuado, preso e, desde sempre, condenado, o homem de Peter Lorre fala de suas confusões internas, de seu sofrimento.

A dor do pior dos homens reflete-se nos olhos e movimentos faciais de quem não quer compreendê-la. É preciso apenas exterminá-la. Motivos, creem, não faltam. Por quase todo o filme, à exceção desse jogo de olhares trocados e argumentos ao léu, tem-se a ação da sociedade, da polícia, dos criminosos, do assassino e das vítimas.

“No mundo ambíguo do cinema alemão, ninguém está seguro de sua identidade, e além disso pode-se muito bem perdê-la no caminho”, observa Lotte H. Eisner em A Tela Demoníaca. Qual é a identidade da sociedade apresentada por Lang? Atingida pelos crimes do assassino em série, a que desesperadamente precisa apagar esse homem.

Na sua procura por “purificação”, o gosto pelo linchamento. É o tema do ótimo Fúria, o primeiro filme de Lang nos Estados Unidos. O linchamento como expressão de verdadeira identidade: olho por olho, dente por dente. Em contraponto, uma suposta organização visual, planos bem executados, simetria de corpos e movimentos que não se perdem nem quando sob sacolejos, como no extraordinário plano-sequência do recrutamento dos mendigos.

A câmera de Lang escala a parede, encontra a janela, atravessa-a e continua seu rumo covil adentro. O chefe da gangue, interpretado por Gustaf Gründgens, fantasia-se de guarda, mais tarde, para invadir o prédio de escritórios no qual o assassino está escondido. A farda cai-lhe bem, não está ali por acaso: remete à figura de autoridade moldada para dar à turba o que esta deseja, para bradar o extermínio dos monstros dessa mesma cidade.

Lang, ao imaginar o pior dos crimes, terminou por voltá-lo aos que o cercam, aos seus efeitos, às prisões que sua mise-en-scène remete-nos: não há lugar pior para o homem do que ele mesmo, não há lugar pior do que a própria sociedade. Aos cantos, o cego é quem “enxerga” o criminoso, enquanto os demais o deixam passar. Enquanto policiais e bandidos, cada grupo em suas mesas, em seus locais de convívio, tramam a prisão do abjeto.

Nessa sociedade de tribunais paralelos, de pedidos por enforcamento, a alternância entre esses grupos produz um efeito estranho e consciente: todos dividem o mesmo sistema, e não causará estranheza se um dia ocuparem o mesmo espaço, a mesma mesa. Em um país perto demais da ascensão nazista, Lang dá aos criminosos o seu verdadeiro lugar.

Em outros momentos, tão seguro de suas opções, o cineasta deixa-nos apenas com espaços, com o tempo corrente. A morte da criança, no início, é precedida pelo prato vazio, por seu lugar na mesa, pelo sótão com roupas penduradas; vemos depois sua bola rolar pelo chão, seu balão preso aos fios de energia. Ela está morta. A sociedade precisa fazer algo.

(M – Eine Stadt sucht einen Mörder, Fritz Lang, 1931)

Nota: ★★★★★⤴

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

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