É inevitável, para não dizer previsível: pensamos na versão de Fritz Lang o tempo todo durante a experiência de M – O Maldito, de Joseph Losey. O que evoca o americano é, no paralelo com a obra-prima do austro-húngaro de 1931, um mergulho em diferenças. Ambos, na superfície, contam a mesma história, a de um assassino de crianças.

Para começar, Losey coloca M em um universo realista, nas locações de Los Angeles a céu aberto, entre barracas de doce, propagandas de Coca-Cola, lanchonetes, vendedores de balão e bonecos eletrônicos que assustam. Coloca-nos no interior de um carro em movimento por rua verdadeira, dando assim a imersão possível em seu aspecto cru.
Enquanto em Lang o crime perpassa o efeito quadriculado dos estúdios, o medo como alusão ao imaginário e o submundo como espaço povoado por figuras monstruosas, sempre às sombras e na limitação do cenário, em Losey o mal abre-se ao mundo que conhecemos – não aquele que antecipa a ascensão nazista, mas o alinhado ao macarthismo.
Em cena, alguém está sem estar: um assassino quase sem rosto que vaga atrás de novas vítimas. Atraído pelas crianças, ele repele mulheres adultas; aprendeu com a mãe, como confessa mais tarde, que o mundo tudo corrompe. Na ausência do amor materno, encontra sua maneira de evitar que esses seres sem maldade sejam aniquilados ou terminem por se transformar nas mulheres que não pode ter: mata-os para ter alívio.
Em passagem rápida mas interessante, ele não devolve os flertes da bela mulher que entra na pensão em que vive; mais tarde, preso em um cômodo com uma de suas vítimas enquanto é cercado por perseguidores, ver-se-á rodeado de peças de manequim, de “pedaços” de mulheres, situação digna dos melhores momentos de um Buñuel.
À sua maneira, o assassino termina por surpreender. Com David Wayne, de rapaz solitário a moribundo jogado aos leões do tribunal paralelo, Losey tem o mesmo êxito que Lang teve com seu extraordinário Peter Lorre: o de nos confundir. De repente o universo em questão é posto de cabeça para baixo: os maníacos tornam-se humanos.
Na mesma trilha do mestre expressionista, Losey adere em momentos ao realismo, mas em outros – muitos outros – impõe sua própria visão do inferno. Acossado pela Caça às Bruxas, ele faz de sua obra um estudo sobre a doença social que paira sobre quem tem medo, quem absorve a paranoia e, a todo custo, busca sua forma de fazer o que crê ser justiça.
Em um momento engraçado, um homem e uma mulher discutem sobre a cor da roupa de uma vítima. Na delegacia, ele afirma que era azul e ela, que era vermelha. A troca de afirmações termina com a colocação mais que apropriada ao momento, feita por esse mesmo desconhecido: “você é comunista?”. Losey deixa claro do que trata: as pessoas não enxergam mais qualquer rastro de razão ou verdade; preferem o que devem enxergar.
Preso o bandido, caminhamos para a formação do tribunal. Licença, de novo, para retornar a Lang: se no clássico o espaço do julgamento já estava pronto, na versão de Losey ele é a consequência do amontoado de pessoas do submundo em um mesmo lugar, a garagem cuja rampa, no alto, expõe uma placa na qual se lê “saída à direita”.
É, para o cineasta, a saída temerária, inevitável, a essa nação no buraco, face a face com a figura que a faz enxergar a inclinação aos seus piores instintos, à sua primitividade estranha, talvez ao espelho que deseja negar: o matador de crianças. Os membros desse “grande júri” pedem a cabeça do assassino, desesperado e espancado.
A sequência toda é assustadora: do banco de trás de um carro à rampa em que se vê quase sozinho, defendido pelo advogado alcoólatra que subitamente arranca forças para dizer o que pensa e termina morto (situação inexistente na versão anterior), o assassino enfim tem uma face, uma alma, o que nos leva a pensar na necessidade da verdadeira justiça.
(M, Joseph Losey, 1951)
Nota: ★★★★★
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)
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Veja também:
M, o Vampiro de Dusseldorf, de Fritz Lang