O desajustado Rusty James (Matt Dillon) vive sob o olhar do irmão. Não que o outro esteja o tempo todo a observá-lo; ao contrário, Motorcycle Boy (Mickey Rourke) deixa o mais jovem solto, ajuda-o quando necessário. O olhar do segundo impregna o outro como exemplo, mito, a dar vida à única atmosfera que conhece: a do preto e branco.
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O irmão mais velho é daltônico, rebelde sem causa (outro) atrás de uma fuga, alguém experiente – ainda que jovem – o suficiente para descobrir que não há saída. Foi para a Califórnia e ficou um tempo sumido. Volta para reencontrar James e selar, na presença de um policial vigilante, o que será seu desfecho, a própria morte.
O olhar do mais velho – a estética de O Selvagem da Motocicleta, em preto e branco expressionista permeado, em momentos, por pinceladas em cores – dá a tônica desse estranho e poderoso filme, obra incorreta sobre um jovem à sombra de outro, sobre não enxergar senão o que o irmão vê e, em certo sentido, sem querer, impõe.
Francis Ford Coppola revisita a tragédia dos laços de sangue. Irmãos que não podem se despregar e que só se despregam – para um deles finalmente encontrar a liberdade, sua vida – quando o outro encontra o fim. O que justifica o tom das personagens centrais, a forma amalucada de James em contraponto à ponderação trágica de Motorcycle Boy.
Para tanto, Rourke precisa ser o incorreto sedutor, dono de todas as respostas na ausência das mesmas, alguém que lamenta, ao irmão, não poder ser o irmão que se esperava. O anjo de asas quebradas que procurou pela mãe na Califórnia e voltou para contar a realidade ao mais jovem: a mãe fugiu com um produtor de cinema, fez outra vida.
Na ausência dela, James vive a perseguir a atmosfera do irmão – mais que o homem em si, que fique claro – à qual Coppola nos conduz, estranho mundo de sonhos, orgias, brigas em becos que remontam algo coreografado, algo clássico como Amor, Sublime Amor. Mas Coppola pode ser mais sujo, mais úmido, desleixado sem deixar de ser nostálgico.
Pelas ruas, os jovens não fazem nada além de viver sob suas próprias regras, beber, dançar, disputar partidas de sinuca – enquanto alguém diz para James que ele nunca poderá ser como o irmão mais velho. O outro, dizem, tem o ás na manga, o brilho estranho que o distingue – como Brando em O Selvagem, como Dean em Juventude Transviada – dos demais.
Pois Coppola revisita esse cinema clássico em mutação ao moderno, cinema de jovens de jaqueta de couro, motos barulhentas, meninas atrevidas, esse mito do adolescente rebelde que Hollywood fez nascer – ou permitiu que fosse traduzido em suas obras, no embalo das transformações sociais, do rock – em filmes de renovação, no pós-guerra.
Os peixes em cores, briguentos e apartados, representam esses mesmos jovens: postos no rio, argumenta Motorcycle Boy, os animais deixarão de brigar. Livres, para nosso alívio, enfim. As cores dos peixes presos ao aquário sinalizam o outro olhar da personagem: sua iluminação interna, o aplacamento de todas as suas dores.
O menino-homem de Rourke é o passo à frente de James, sua trilha ao crescimento, constatação de que, se ficar por ali, não encontrará mais que um relógio sem ponteiros, no qual se escora o policial perseguidor – qualquer policial. Cidade árida, com fumaça por todos os cantos, tão triste quanto a de A Última Sessão de Cinema.
Enquanto os anos 1980 eram embalados, de maneira significativa, por comédias adolescentes idiotas, matinês que Hollywood tão bem comercializou, algo como O Selvagem da Motocicleta, do livro de S.E. Hinton, destoa. Ao longo dessa experiência, pensamos nos inconformados, nos peixes que eles querem libertar, sem nunca atingir as margens do rio.
(Rumble Fish, Francis Ford Coppola, 1983)
Nota: ★★★★☆
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