Medeia, de Lars von Trier

Os homens fazem a guerra, voltam dos combates com medalhas e loas. À mulher resta a espera, submissa, posicionada ali para cuidar dos filhos pequenos. No caso do Jasão de Medeia, da obra de Eurípides, o prêmio é uma nova esposa, a jovem princesa que mais de uma vez surge sem roupas na adaptação de Lars von Trier.

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À conhecida história, com roteiro de ninguém menos que Carl Theodor Dreyer, o cineasta constrói um visual incorreto, propositalmente, para o apagamento de uma mulher que, na tela, esfarela, desfaz-se enquanto descobre seu novo destino. Obrigada a se exilar após o novo matrimônio do companheiro, Medéia (Kirsten Olesen) busca vingança.

A grandeza mescla-se ao confinamento, à cápsula que von Trier evoca em sua busca por detalhes. O filme é construído com meticulosa frieza, sem nunca encostar naqueles corpos em tela. Mesmo que viva, possível, real, sua Medeia – agarrada à areia da praia, que se deixa penetrar pela água que quebra em suas mãos – é mítica.

Tantas vezes acusado de misógino, von Trier dá vida a uma mulher forte, não menos comum, não menos enigmática. O visual de vídeo, nesse filme feito originalmente para a televisão, dá à obra o estranho contraponto entre o experimental e o épico, entre golpes de desleixo (o momento em que a câmera afunda-se na água, ainda nos primeiros minutos) e o voo ao reino da tragédia grega (o cavalo enlouquecido e rumo ao oceano).

Jasão, como se imagina, perde tudo – a começar por Medeia. Sua mulher espera-o, mas não aceita suas escolhas, ou as de um reino que exala a sujeira dos homens. De cabelos sempre presos, escondidos pelo tecido que recobre a cabeça, a mulher está anulada de antemão: não expõe o sexo e, em algum sentido, dará a identidade pela vingança.

É o que a define, o que, paradoxalmente, possibilita sua revelação: contra os machos chegados à coroa, ao sexo com ninfas, mulheres como Medeia reivindicam sua posição de ser para além de papéis impostos, enquanto se afasta do espectador atento. Não é possível puni-la ou adorá-la: a mulher é um resultado, um mito, é maior do que parece.

Pelo pântano, à neblina, ela renasce para conduzir sua vingança; de volta para sua casa escura, na qual esperava o marido, dá vez à trama macabra: coloca veneno nas pontas de uma coroa de espinhos, logo dada à nova companheira de Jasão. Como o cavalo, mas também diferente deste, a mulher toca uma das pontas, deixa-se tomar pelo mal.

O cavalo, como já se disse, enlouquece, escapa, corre ao mesmo mar no qual Medeia revê sua história, no início, antes de subir no barco e desaparecer. Sua tragédia só será completa com a morte dos filhos, momento difícil de assistir, ao vento que se propaga em ondas, que pode ser visto do alto, enquanto Jasão procura pelo que restou de sua família.

Como Dreyer, a despeito de todas as diferenças, von Trier não renuncia à frieza em nome das tentações da tragédia grega – tudo o que a natural, de Eurípides, poderia conferir. Ao contrário, e como Dreyer, oferece o filme pelo todo, pelas partículas que se avolumam para se entender a personagem e seu ataque àqueles que tentaram tomar seu destino.

As personagens de von Trier lutam até certo ponto contra um universo incontrolável, contra complôs, acertos territoriais, homens conservadores, igrejas, reinos imbecis, um estranho jogo que remete a um teatro de marionetes ao qual, ao alto, posta-se um Deus estranho – ou um autor implacável – de olho em sua criação.

(Medea, Lars von Trier, 1988)

Nota: ★★★☆☆

Veja também:
A Casa que Jack Construiu, de Lars von Trier

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