Estranho Acidente, por Judith Crist

Estranho Acidente, segundo trabalho cinematográfico conjunto realizado pela dupla Joseph-Harold Pinter, é, como O Criado, um filme para ser visto com o maior prazer e para meditar por muito tempo após a sessão. E se nos ocorrerem dúvidas sobre a conveniência de meditações a respeito de uma película, pelo menos teremos a satisfação de presenciar dois profissionais do cinema num trabalho de alto quilate.

Em sua adaptação do romance de Nicholas Mosley, Harold Pinter mais uma vez comprovou seu gênio para captar a essência de nossa sociedade, envolvida apenas por aparências, para chegar à intimidade dos problemas aflorados na tela, com alfinetadas que doem na pele, para transformar lugares-comuns em portentosas sugestões que tratam da agonia humana que jaz sob sigilos impenetráveis muitas vezes. Por seu turno, a ativa câmera de Joseph Losey observa os fatos com perspicácia e nos desafia a acompanhá-la em sua busca de resposta a coisas que estão além de mera visualização.

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A fita começa literalmente com um estrondo: ocorre um acidente automobilístico perto da residência de um professor de Oxford. Dois estudantes vinham no carro: William, rapaz de valor, morre no local do desastre. O professor de Oxford consegue retirar a sobrevivente Anna das ferragens; leva-a para a casa dele, deixa que a polícia conclua que apenas o rapaz se encontrava no veículo acidentado e então, vigiando o sono agitado da moça, reconstitui o início do relacionamento dos dois.

Através de flashbacks, somos apresentados às pessoas que tinham contato com o rapaz e a moça. Stephen, o professor, que a ambos atraía por sua mentalidade jovem e com sua relutância em entrar na meia-idade, louco para conquistar a garota, enigmática e exótica; Charles, extrovertido e bem sucedido colega dos dois, a quem o professor inveja por causa de seu físico e de seu vigor atlético; Rosalind, a esposa sensível e pragmática de Stephen, ciente da vulnerabilidade do marido durante a gravidez de seu terceiro filho e também ciente de todo o cortejo de maluquices e patéticas fraquezas que cercam os homens casados de uma certa idade.

Encurralado entre os três adultos “amadurecidos” da trama se acha um menino, vagamente a par do desafio que se apresenta diante dos homens, das mulheres e das moças – especialmente aquela que se encontra impassível, convencida de que é mesmo foco de desejo mas aparentemente dedicada a evitar que essa atração a contamine e a estimule a iniciativas mais eróticas. E numa sequência excelente, todos passam um languido e delicioso domingo de verão na casa de Stephen, tomando drinques e praticando variados esportes, a fim de esconder ou disfarçar a pirâmide da emoção, as suspeitas, os ressentimentos e os ciúmes, as feridas menores infligidas de passagem e de cicatrização fácil. Todas são pessoas relativamente decentes – por puro acaso, aliás – e se envolvem umas com as outras, chorando mágoas mutuamente e com uma superficialidade do tipo “alguém para parceiro do tênis hoje?”.

O centro do interesse do filme é o envolvimento dos dois homens com a moça, sendo que de parte de Charley o vínculo é claro e público. Mas é Stephen, homem inteligente e responsável, marido dedicado e discreto, quem se volta para a amoralidade, comete um ato indecente e mancha seu comportamento – tudo isso por coincidência – no desastre de automóvel que ocorre perto de sua casa.

A fartura aparente e a calma superficial de suas exigências em Oxford e seus arredores são contrabalançadas pelas frustrações de Stephen ao tentar competir com Charles e ao procurar reacender um romance com uma ex-amante; tudo isso provoca explosões de violência física (por exemplo, uma partida de rúgbi doméstico tradicional que permite que mestre e aluno travem sua batalha particular pela conquista da moça), com erupções emocionais no silêncio da noite ou na solidão de um jardim campestre úmido.

O filme prima pela impassividade e inteligência, com Dirk Bogarde (Stephen), Stanley Baker (Charley), Vivian Merchant (Rosalind) e Michael York (William) colaborando para maior realismo e convicção do que se passa na tela. Todos se destroem entre si – por acidente. Todos são vítimas de seus instintos desenfreados – por acidente. É verdade. Talvez verdade demais. Tão verdadeiro que terminamos concluindo que Losey e Pinter jamais conseguiram declarar o óbvio tão obviamente.

Eles o declaram em fascinantes termos cinematográficos, enchendo os olhos do espectador, alertando seu ouvido para cada nuança, excitando-lhe o intelecto. Estranho Acidente é algo para ser bem observado e depois meditado com atenção.

“Agonia sob a pele” (18 de abril de 1967). Publicado no Brasil no livro De Cleópatra a Bonnie & Clyde (Editora Lidador; p. 252-253).

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