O cabelo e o figurino remetem às mulheres místicas do passado. Não apenas: o comportamento também é semelhante, necessário às intenções do diretor Claude Chabrol. Por isso, não é difícil pensar em Claudette Colbert, Dita Parlo ou Louise Brooks, “corujinhas indolores” com mais do que parecem possuir. Violette Nozière é do mesmo grupo.

É muitas em uma só: mulher livre, prostituta, assassina, dona de paixão inexplicável. Chamam a atenção sua frieza e a maneira como lida e engana os próprios pais (Stéphane Audran e Jean Carmet); em seu apartamento, comporta-se como inquilina, nega-se a ser a verdadeira filha; em muitas passagens, precisa ser uma fantasma.
O mal que move Violette é um mistério, como em outros tantos filmes nos quais o mestre Chabrol não tem qualquer intenção de afagar o público. À tela perguntas e mais perguntas pululam ao passo que a protagonista faz-se profunda sem se explicar, ao passo que todos os meios para entendê-la por completo estão interditados.
Para Isabelle Huppert, o cineasta pede que seja contida, que exprima o máximo com o mínimo, para mais tarde soar contrita, presa no tempo que lhe resta – o da morte, ou o tempo que a acompanhará na cela da prisão, até seus últimos dias. Até esse ponto de sua jornada, a menina vive para driblar a família, fazer o que quiser.
Fala-se aqui do mundo físico. Ela precisa de dinheiro, e com ela o dinheiro desaparece. As memórias não dão conta de indicar o que teria ocorrido para que chegasse a tal ponto, ao bloco de gelo no qual se converteu. Por curioso que pareça, a mesma moça deslocada, indiferente à dor dos outros, conseguirá se apaixonar.
O caso de amor é com o insuportável Jean Dabin (Jean-François Garreaud), cujo cabelo em gel custa a se deformar mesmo quando está na cama com a companheira. Dela quer apenas o dinheiro; com frequência, faz viagens e some por dias; na ausência dele, a moça corre ao quarto de hotel no qual restam a companhia da camareira, o espelho para beijar, horas para dormir, à tarde, para depois enfrentar a noite de prostituição.
O clima do mundo entre guerras – ao som do nome de Hitler, sob a possibilidade do autoritarismo que ronda – dá lugar às faces fechadas, às ruas ermas, ao choro no bonde em movimento, em passagem naturalmente rápida. De qualquer forma, Violette escapa, insiste em ser o mistério, em dizer muito com nada: pequena, não despercebida.
Para Chabrol, o distanciamento é honesto, revelador. Em suas próprias palavras, reproduzidas no Dicionário dos Cineastas de Georges Sadoul, é preciso “evitar o sentimento falso” e “mostrar que o honesto de uma sociedade alienada está na putrefação dos valores fundamentais”. A protagonista é seu choque de realidade, o confronto.
O que mais dói no atentado à família está na própria forma daquele apartamento, em sua pequenez, na ideia de que todos se ouvem e se suportam. Enfim, na vida medíocre, no desejo de ir embora, na suspeita – nunca confirmada – de que o pai adotivo possa realmente estar observando a filha, da qual teria abusado. As incertezas contribuem ao fascínio dessa obra em que o assassinato soa calculado, depois se revela consequência natural.
Nem por isso se defende a protagonista Violette Nozière. O máximo que se tem de Chabrol é o consentimento da dúvida, nas palavras e olhares de alguém no beco sem saída, recoberta pelo mal, de destino que pode ser explicado pela imagem da abertura: o avanço às grades e em seguida à abertura do espaço, em movimento de libertação.
(Violette Nozière, Claude Chabrol, 1978)
Nota: ★★★★☆
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)