O Lago do Ganso Selvagem, de Diao Yinan

O movimento das personagens beira a artificialidade nas sequências com violência. Elas assemelham-se a figuras saídas de um videogame. Fica a impressão de gratuidade, com planos em detalhe criados para chocar, tiros e golpes inesperados para uma China feita à umidade, de luzes neon que cortam becos e vielas, em um filme difícil de explicar.

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A violência é coreografada, cortante, nunca ao acaso. O Lago do Ganso Selvagem – título que remete ao lugar inexistente, estranho paraíso de prostitutas e matadores – limita-nos a uma estética ao mesmo tempo bela, ao mesmo tempo exótica, a esse sentimento de arremedo, de lugar algum, enquanto conferimos, sem dúvida, uma obra original.

Não é sobre violência, mas sobre incerteza, sobre a miséria à qual a dupla de protagonistas é conduzida: ele, um ladrão de motos que matou um policial por acidente, em noite de chuva, quando, sangrando, fugia de outro criminoso; ela, uma prostituta contratada para encontrá-lo, destinada a ser – como já se disse em demasia – a dama fatal.

Mas as verdadeiras damas fatais não agem como ela, não sofrem caladas pelo amor que ajudam a ceifar, tampouco tentam corrigir seus erros. As damas malditas do cinema clássico – as mesmas que contribuíram à força feminina na tela, à emancipação pela forma da vamp – levam o homem à desgraça com algum prazer.

O diretor Diao Yinan apresenta uma China de violência como gesto inconsequente, nunca calculado, sem que sejamos colocados apenas no colo do investigador. Ao contrário, temos acesso a diferentes pontos de vista, aos cantos recônditos dessa nação caótica de pequenos bandidos sobre pequenas motos, aos sinais de uma distopia.

Começa com uma chuva fina e um homem sob uma estrutura de concreto, à luz neon. Ele tem um machucado no rosto, sinal do passado. Ele, Zenong (Hu Ge), é abordado pela garota que não está ali ao acaso, a prostituta Aiai (Gwei Lun-Mei), paga para levá-lo até sua mulher, funcionária de um mercado de pulgas e seguida pela polícia.

Eis o resumo à mão: uma fita policial sobre procura, investigação, bandidos, informantes e policiais. Yinan evita atalhos: seu filme transporta as peças conhecidas à ação e depois à beleza do respiro, do lento movimento; quer dizer, a ação é apenas um passo para que as personagens compreendam o espaço que dividem, a natureza das coisas.

Essa visão de futurismo fracassado traz matadores (policiais) com tênis que acendem luzes quando se toca o solo – algo que salienta a esquisitice e nos confunde. Em um momento engraçado, o chefe da polícia pede que um de seus infiltrados retire a camiseta estampada, “de marca”, porque os homens que eles imitam não usariam algo do tipo.

Produzir tais misturas é sempre um risco. Yinan contorna-os e ainda impõe mais excentricidades, como a cantora presa a uma caixa, atração de circo posicionada ao lado do pequeno labirinto de espelhos percorrido pelo casal central. A cena contribui à ideia de delírio do homem próximo à morte, destino certo, sabemos.

Em um momento de perseguição, os policiais terminam no interior de um zoológico. A passagem resume esse grande filme: são os animais que passam a observá-los, não o contrário. A coruja, o tigre assustado. Eles matam outros homens e são assistidos por diferentes espécies presas às jaulas, essa outra exibição da vida selvagem.

Enquanto Zenong leva-nos à ação, a pequena e nunca imperceptível Aiai distribui sentimentos que passam pelo medo e pelo amor, pela resistência de alguém que resolve trilhar um caminho até o fim – ainda que isso signifique a morte do homem que ela aprendeu a amar e a abdicação da recompensa dada pela cabeça do mesmo, paga em dinheiro vivo.

(Nanfang chezhan de juhui, Diao Yinan, 2019)

Nota: ★★★★☆

Veja também:
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