Os náufragos da grande embarcação observam o que sobrou da mesma com certa paixão. Atacados pelos inimigos alemães em alto mar, eles assistem ao desaparecimento da estrutura metálica, pouco a pouco engolida pelas águas em Nosso Barco, Nossa Alma. É como se os membros de uma mesma família assistissem ao funeral do pai.
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À parte o horror incontornável, o filme dirigido por David Lean e Noël Coward é feito de paixão inegável. Por isso mesmo, e pelo fato de ter sido lançado durante a Segunda Guerra Mundial, não esconde ser uma peça de propaganda: os homens sofrem, em tela, sem a guarda daquele barco que se despede em estranho ritual fúnebre.
Durante a guerra, os homens sofrem esse efeito imediato da perda enquanto retornam às memórias de dias felizes em família, com as descobertas do amor, os jantares entre parentes, o convívio com os filhos. À necessidade de chorar pelo barco impõe-se o que há por trás de tudo: a família britânica e seus laços inseparáveis, a vida à sombra inimiga.
E é à aura da família que Lean retorna em seu filme seguinte, dirigindo sozinho e com roteiro baseado em uma peça do mesmo Coward: Este Povo Alegre. Aqui, o espaço é o do pós-Primeira Guerra Mundial, dias que anunciam o fascismo em países vizinhos, tempos de politização e algum conforto, estado que antecede a Segunda Mundial.
A guerra tem seu lado bom, aponta Coward: em Nosso Barco, une diferentes gerações, diferentes homens. A causa é a mesma, a morte aproxima todos. Estão ali, à deriva, lançados à própria sorte, sujos de óleo e ao mar, obrigados a contemplar o funeral do grande barco que, nascido do ferro, simboliza a força da nação, a paixão pela vida de marinheiro.
Em Este Povo Alegre, ao contrário, o entreguerras separa ideologicamente alguns membros de uma mesma família, além de expor o abismo entre pais e filhos. O pai, sobrevivente da Primeira Guerra, viveu o tempo de desconforto, de incerteza, enquanto os filhos, recolhidos na agradável casa de subúrbio, são atacados pelas mudanças do momento de passagem: a paixão que chega ao protesto, ao calor das ruas, não à guerra.
Trata-se de defender uma ideologia, não um país. Não viviam ainda a incerteza do amanhã, o clima do conflito armado, sob o som das bombas que cairiam dos céus, dos aviões alemães. Lean e Coward são enfáticos quando se aproxima esses filmes aparentemente diferentes: guerras são absurdas, mas, em alguns casos, necessárias, até apaixonantes.
Curioso como o retrato da família britânica do entreguerras deixa o espectador mais desconfortável se comparado ao período sob fogo retratado em Nosso Barco, com o próprio Coward em cena, o homem do velho tempo, dos discursos emotivos, ainda distante dos militares carrascos que ganhariam espaço, mais tarde, em outro cinema.
Esse “velho homem” carrega a honestidade esperada, não muito longe das figuras do filme seguinte, dos pais e vizinhos bondosos, das mães de face sofrida, dos filhos que podiam chegar em casa com a cabeça enfaixada, após um protesto, e não deixar espaço à ambiguidade: o material do qual são feitos recheia esse período clássico.
A família é a simbologia maior do entreguerras: é necessário se agarrar a ela com todas as forças. O oposto é a fragmentação. Na guerra, por sua vez, a nova “família” está sob o sinal do gigante metálico, ou em seu interior, todos como peças de uma linha de produção pela qual deslizam bombas em quantidade semelhante aos gestos de camaradagem, entre homens que morriam como morriam os homens no período clássico.
Nosso Barco assume pela guerra um amor desavergonhado. Ao inimigo, o prazer de estar ali, ou o resultado desse combate que todos desejavam evitar. Coward, em cena, deixa ao fim os cumprimentos, a todos os homens, o sentido que brota desse gesto sem pressa, do tempo levado a cada camarada. É no tempo dos cumprimentos, aparentemente longo, que reside o sentido desse belo filme: cada homem merece seu momento.
O marinheiro vivido por John Mills em Este Povo Alegre talvez lembre o espectador da segurança dos homens de sua classe, e por isso mesmo será indesejado pela filha do protagonista, o vizinho interpretado por Robert Newton. Coadjuvante aparentemente distante a essa família ocupada com filhos que casam, morrem ou desaparecem.
O filme nasce e termina na casa vazia. Ou antes no alto, no plano geral do subúrbio e suas moradias idênticas, passando ao movimento, ao espaço a ser ocupado. Vai à porta, à entrada desse “povo alegre”, para retornar a ela: do vazio ao vazio, com a família ao meio, no entreguerras. É a história do meio, dos ânimos dessa gente simples à mercê da História.
Espaço ocupado, por sinal, não falta em Uma Mulher do Outro Mundo, no qual Lean lida com a comédia de Coward: tudo no lugar, com piadas e velocidade, com a leveza e a pitada de libertinagem perfeitamente escondida sob os bons modos britânicos. História de um homem casado que recebe a visita do espírito da ex-mulher.
Ainda sobre Este Povo Alegre, Lean oferece, de maneira proposital, a exposição do tempo e o espaço aberto em momento tocante: a saída da filha ao quintal, para revelar ao pai e à mãe a morte do irmão. O retorno dos pais ao interior demora um pouco, o suficiente para o espectador entender o motivo dessa indução à agonia, à espera.
A comédia de fantasmas, à contramão, preenche os espaços com corridas, tombos, móveis flutuantes, com o abrir e o fechar de portas, com o texto rápido e preciso, com a impressão de que qualquer efeito mórbido é nada mais do que graça: é, sem dúvida, o efeito da vida após a guerra, quando se vê, na tela, o riso desse povo alegre e agora abastado.
Até os fantasmas preenchem espaços vazios. A primeira aparição de Kay Hammond, por sinal, é o exato oposto à entrada do casal que descobre ter perdido o filho em Este Povo Alegre: da cortina, no campo esquerdo da tela, ela emerge como um furacão, a combinar com o clima aqui reproduzido, como se não houvesse tempo ao quadro vazio.
O controle da narrativa que leva à dor é um dos méritos de Lean. Nada supera, portanto, os instantes em que o casal está prestes a se separar em Desencanto, outra vez com um texto de Coward, de volta ao preto e branco. Na tela, a mesma atriz que interpreta a mãe linha-dura em Este Povo Alegre, esculpida sob a face do rancor, da perda: Celia Johnson.
Jeito aparentemente comum, passageiro, de alguém que se deixa ver aos poucos – e, ao espectador, que confessa o desejo de fugir, de escapar da amiga fofoqueira que lhe faz companhia no trem, no início, após ver escapar seu grande amor, o médico com o qual manteve um romance breve. É na estação de trem que o tempo conta, e consome.
Na estação em que o vazio apodera-se da tela, no espaço cortado pela locomotiva e, sobretudo, no olhar perdido, com a franja lançada à frente do rosto, da mesma mulher que se descobre sozinha outra vez, de volta ao mesmo caminho, à mesma vida, a esses instantes que traduzem o desespero do mundo pós-guerra.
A heroína, além de enfraquecida, precisa confirmar o que insinua a colega fofoqueira durante a viagem de volta para casa: ela possui raízes. Nesse universo que aponta à segurança de um mundo sem conflitos, distante das frases de efeito de Nosso Barco ou das paralisias e tombos de Este Povo Alegre, resta mesmo o encontro com a realidade.
Não à toa, quase o filme todo é feito de lembranças, o retorno aos dias felizes com o belo médico. Não se duvida de que tudo é verdade. Laura (Johnson) viveu momentos de amor, separados da vida talhada ao cotidiano sem graça. O rosto da dama, paralisado, a olhar ao nada, põe-se entre o sonho desfeito e a realidade que retorna.
Com o pós-guerra, em 1945, vem a constatação de que a realidade é maior, de que a dama terá de viver à sombra de todos os instantes apaixonados do passado, mas destinada a voltar para sua vida comum, para o marido desinteressante, na companhia da amiga irritante. Os dias seguintes são incertos. A felicidade é efêmera.
(In Which We Serve, David Lean, Noël Coward, 1942)
(This Happy Breed, David Lean, 1944)
(Blithe Spirit, David Lean, 1945)
(Brief Encounter, David Lean, 1945)
Notas:
Nosso Barco, Nossa Alma: ★★★★☆
Este Povo Alegre: ★★★★☆
Uma Mulher do Outro Mundo: ★★★☆☆
Desencanto: ★★★★★⤴
Foto: Desencanto
Veja também:
Império do Sol, de Steven Spielberg