Vozes, corpos, faces

Em Persona, de Ingmar Bergman, antes das personagens, de toda a matéria, existe a luz. E existe o cinema. A luz projeta imagens, dos primórdios às primeiras trucagens, da aranha sobre o espaço branco (a imagem científica) à ovelha sacrificada (o cinema de vanguarda, a montagem). É como se Bergman apontasse à constituição de sua matéria, à da arte. Sem essa matéria não há vida. Do que trata Persona? De duas mulheres em uma ilha, duas faces, uma com voz, a outra muda. Uma enfermeira e uma atriz.

Ao embarcar em outra proposta ousada, Vaga Carne, filme brasileiro de Ricardo Alves Jr. e Grace Passô, lembrei da obra-prima de Bergman, sobretudo de sua abertura. Ambos tem formas que convencionamos chamar de experimentais, aproximam-se de ensaios. O de Bergman tem uma camada interna na qual enxergamos com mais facilidade uma trama, uma história, as personagens e seus conflitos. Vaga Carne é mais claustrofóbico, com uma personagem central e outras feitas para encará-la, para fazê-la ver a si mesma.

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Tanto em Persona quanto em Vaga Carne o que está em cena são jogos de espelho, descobrir a si mesmo a partir da presença do outro. Constituir-se a partir do outro, a partir de sua voz ou mesmo de seu silêncio – e, em algum momento, preencher esse silêncio e depois tentar escapar do corpo, fazer a ruptura. Deixar a ilha ou o palco.

Em Vaga Carne, a protagonista é uma voz. Depois de ocupar diferentes matérias, essa voz resolve tomar um corpo. “Vozes existem. Vorazes. Pelas matérias”, diz ela. Das descobertas aos estranhamentos, assistimos também às suas dúvidas e conflitos principalmente depois de encontrar os olhos daquele corpo. A voz pode ver, e ver é ver os outros.

Logo, é participar do mundo ao redor, é se estender aos demais. É encontrar a troca, a cultura, é se constituir como ser social. É estar em uma aldeia, em um grupo, em uma sociedade. Não por acaso, o corpo antes vago, depois ocupado pela voz, é um corpo negro, o da atriz, roteirista e co-diretora do filme, Grace Passô. É somente na junção de corpo e voz que encontramos a dimensão social, política, também sentimental desse belo filme baseado em uma peça de teatro de mesmo nome. Que fique claro: é cinema, não é teatro filmado.

Lançar a voz em um mundo de vozes negras abafadas, silenciadas, de olhares trocados que permitem ver o outro é um gesto político. Claro que não existe voz sem corpo. Mas não existem corpos sem vozes, quando pensamos na voz para além da linguagem sonora e articulada? Não existem corpos sem noção de suas existências? Nesse sentido, o filme de Alves Jr. e Passô parte do impossível e aterriza em uma realidade comum.

No jogo teatral – e no teatro como representação do espaço do mundo -, a voz que descobre os outros não demora para entrar em conflito com si mesma. Um curto-circuito leva à saída de cena, a voz aos poucos se apaga e dá lugar ao ruído das máquinas. Ao tomar um corpo, uma voz não mais existe de forma isolada. Tanto Bergman quanto Alves Jr. e Passô negam a existência do monólogo – mesmo quando o ser em questão prefere o silêncio.

Bergman era um homem de teatro e de cinema. Alguns de seus filmes expõem o conflito entre pessoas de vozes distintas, em jornadas de descobrimento, como Morangos Silvestres, O Sétimo Selo, O Rosto e, mais tarde, O Ovo da Serpente. Em todos, a dimensão social está sempre presente. Outros preferem o espaço em que todos se conhecem – ou julgam se conhecer – e no qual o embate é mais interno, como em Através de um Espelho, A Hora do Lobo, Gritos e Sussurros e Sonata de Outono. Persona consegue dialogar com os dois grupos e por isso nos ajuda a compreender uma obra inteira.

Publicado originalmente no Jornal de Jundiaí em 11 de outubro de 2023.

AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

Veja também:
A Ilha de Bergman, de Mia Hansen-Løve

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