O homem que passa pelo filme todo, que só permite que este chegue ao fim quando morre, não é o protagonista. Aos olhos de todos, à exceção da criança que lhe faz companhia, é um louco, alguém que fala à toa, sem pensar, cospe palavras como ingere qualquer coisa pela frente, em sua vida miserável, estado que as roupas não deixam mentir.

A exceção faz-se necessária, de novo: todos, menos os colonizadores, são miseráveis, gente com pouco ou nada que, no início de Crônica dos Anos de Fogo, nos chamados “anos das cinzas”, ainda lutam por água. Vivem no deserto, assistem à morte de animais, esperam alguma chuva distante levar água para seus lagos secos.
A situação não melhora com a ida para a cidade. Mudam os problemas. O protagonista, Ahmed (Yorgo Voyagis), passa pelos “anos das cinzas”, depois pelo “da carroça”, pelos “das brasas”, o “do massacre” e, ao fim, no desfecho para 15 anos da história argelina, da Segunda Guerra Mundial à sua independência, pelos “do fogo”.
Ahmed vive no deserto e assiste à seca. Sofre ao lado da família. Em momento brutal que abre o poderoso filme de Mohammed Lakhdar-Hamina, vencedor da Palma de Ouro, cães brigam sobre pouca água. Anunciam ali a luta dos homens, ou seu estado diminuto, agora no nível do cão. À miséria segue a barbárie, as feras dão as caras.
Ao perceber o tamanho do problema, Ahmed vai para a cidade. A aparência primitiva, sem deixar saber o tempo, dá lugar às casas, prédios, à História que bate no colonialismo, chega à guerra, às doenças, igualmente às amostras das difíceis condições de trabalho e vida do retirante. Ao brigar com o patrão, Ahmed é preso e espancado por soldados. Sua situação faz pensar no protagonista de Vidas Secas.
Os problemas não são tão diferentes dos revelados por Graciliano Ramos, levados ao cinema por Nelson Pereira dos Santos: famílias que sobrevivem sob cacos, barracos ou pedras, pelos becos, à areia e ao sol do deserto (ou do sertão), dividindo espaço com carcaças de animais, presos ao poder e à opressão do colonizador (ou do patrão).
Para Ahmed, com a falta de oportunidades e a doença que recai sobre o filho, de cara com a prisão que a cidade converteu-se (sitiada, da qual só saem os franceses), resta a revolta e, à frente, a consciência de que a política – a da palavra, talvez, ou com alguma certeza maior a das armas – pode resolver a questão. Homens como Ahmed aceitam pegar em armas para lutar pela liberdade de seu país, contra os invasores franceses.
A história contada antecede a de A Batalha de Argel, obra-prima de Pontecorvo. Vai à terra bruta, com cores, em um trabalho de direção seco, com pontas fincadas no neorrealismo. Não por acaso, em Ahmed e outros vê-se apenas a face petrificada, ainda que inegavelmente tomada pela tragédia de um tempo de transformações.
Lakhdar-Hamina não dá abertura ao psicologismo. Capta o movimento, a dor do homem em seu espaço, como fez Visconti em A Terra Treme. Permite ver o “amadorismo” dos atores; impõe, na verdade, gente comum, pessoas que viveram o problema, massa que se move para dar ao filme seu verdadeiro significado: a busca pela consciência, em Ahmed, depende desse choque com o real, base desse cinema.
O louco (interpretado pelo próprio diretor) é outra coisa, sem que se perca o realismo: é o delírio que se desprende como produto – não como diferença – de tudo o que se vê aqui. Ao impor uma interpretação, ainda assim fará parte, em sua ilusória – mas lúcida, em curioso jogo de inversões – convocação dos mortos, entre túmulos.
A loucura, nessa terra de verdades gritantes, é abençoada, como propõe o mesmo homem. Segundo ele, a loucura o fez ver a luz. É quando segue ao horizonte, à própria morte. Seu companheiro, filho de Ahmed, corre ao barulho das metralhadoras. O casamento de imagem e som é significativo: a despeito das armas, o menino sobrevive.
(Ahdat sanawovach el-djamr, Mohammed Lakhdar-Hamina, 1975)
Nota: ★★★★☆
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)
Veja também:
A Terra Treme, de Luchino Visconti
