Barton Fink, Delírios de Hollywood, de Ethan e Joel Coen

A Hollywood clássica é vista apenas em interiores, salas e escritórios, grandes casas com belas piscinas. Reduzida à clausura, ajuda a compreender a ideia central de Barton Fink, Delírios de Hollywood: a indústria das falsidades pertence à mente do protagonista, um escritor que deseja criar histórias sobre pessoas simples em um local em que nada pode ser assim, menos ainda as personagens de ficção.

Por Barton, o anti-herói estranho dos irmãos Joel e Ethan Coen, chega-se não mais que à total abstração, à terra mantida pela imaginação da maioria, mas que não pode ser tocada, ou compreendida, por alguém à margem, quase extraterrestre. Sua ida e seu trabalho reduzem-se às horas e dias em um hotel, ao poder da imaginação.

O protagonista tem sua própria Hollywood, imposta por delírios, por isso mesmo inexata. Os cineastas e roteiristas não dão a mínima: não se busca qualquer fagulha real, mesmo quando se vê o chefão balofo encarnar o que se imagina dessa gente prepotente que finge se importar com a arte, desde que esta não seja sobre gente comum.

Há algo incorreto, deslocado, desde a primeira imagem de Barton Fink: fica-se antes com o teatro em seus bastidores, ainda que o mesmo teatro seja fincado nas histórias verdadeiras que o escritor gosta de contar. O assistente de palco, a voz que não aparece, a roldana que corre pela corda, do alto para baixo, para fazer encontrar o protagonista.

A impressão é que ele faz parte do cenário de fundo, como se a máquina da ficção tivesse trocado de lado: da plateia para a coxia e, mais tarde, do cinema alegre da época às paredes sebosas e um pouco verdes do velho hotel de corredor profundo. É a própria visão da loucura, do homem cercado por seus medos, ao som que fustiga.

O som estranho vem do quarto ao lado. Barton (John Turturro) conhece o vendedor de seguros Charlie (John Goodman), alguém que serve bem à personagem que busca, nas linhas da história dada ao novo roteirista: algo sobre luta-livre, a chegar à tela com Wallace Beery. No pequeno quarto, ele precisa dar tamanho a esse fio, criar sua história.

Descobre que ali nada é comum, nem o modelo de homem do povo que reside no quarto ao lado. Em sua procura pela história, Barton consulta outro roteirista, também escritor experiente, e envolve-se com a mulher do mesmo (Judy Davis). O ídolo é demolido, seja pela bebedeira, seja pela falsidade intelectual, e sua mulher é assassinada.

O protagonista de cabelo quadriculado dos Coen queria matar apenas um pernilongo, ao que tudo indica. Descobre a mulher morta ao seu lado, sangue abundante pelos espaços de seu corpo, em seu colchão velho. As formas do cadáver e as marcas de sangue continuarão ali, para a cegueira dos policiais vindos do próprio cinema, com fala decorada.

Vale o detalhe do pernilongo, a penetração no sangue, a diminuição àquele mínimo espaço da pele: nada se sabe sobre pessoas de um universo estranho, falso, da mulher e do homem que se nutrem de vícios e falsidades para sobreviver – como Barton – à terra do cinema, em hotéis visivelmente em estado de putrefação.

O mais certo é que Barton não a tenha matado. Não se sabe. Se o fez, talvez tenha a ver com a outra personalidade que vem assombrá-lo, o grandalhão do quarto ao lado: ao ir ao encontro do homem comum, do vendedor de seguros, Barton descobre a estranheza, o torto, o assassino em série perfeito aos policiais robóticos em seu encalço.

O protagonista volta para o mar, a câmera também. Em momento curioso, ainda no início, a imagem das ondas que se quebram em uma rocha funde-se à do saguão do hotel, na chegada do roteirista a Los Angeles. Natureza viva, pulsante, casada à morbidez, ao beco com peles que se descolam das paredes, de figuras sinistras, cinematográficas.

Volta, ainda, ao quadro da parede do quarto, sua fuga: à mulher que observa justamente o oceano. Imagem que ganha existência, resumo de um filme que em momentos beira o genial: no universo em que o espetáculo substitui a vida, a ficção precede a realidade, como as palavras que saltam da Bíblia, incorporadas pelo anti-herói.

(Barton Fink, Joel Coen e Ethan Coen, 1991)

Nota: ★★★★☆

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

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