O Quarto Homem, de Paul Verhoeven

O protagonista delira. Não duvidamos em momento algum. Todo o filme é sedimentado na força desse delírio que se apodera de um escritor alcoólatra e bissexual. Também não duvidamos que seus delírios possam conter respingos de realidade, que a mulher que aparece em seu caminho – loira, bela, de cabelos curtos, um pouco andrógina – talvez seja a aranha que mata as presas em uma teia tecida sobre as estruturas de um corpo exposto, sofrido, desejável aos olhos do protagonista: a imagem de Cristo.

O diretor Paul Verhoeven, apoiado pelo roteiro de Gerard Soeteman, a partir da obra de Gerard Reve, mostra que a adoração ao Cristo crucificado envolve desejos, inclusive carnais: em uma das cenas-chave de O Quarto Homem, o protagonista Gerard (Jeroen Krabbé) enxerga na imagem de Cristo a imagem de um rapazote que ele deseja, justamente o namorado da mulher loira que, por alguns dias, acolhe-o em sua casa. Ao tocar o rapaz crucificado, ele baixa sua sunga para enxergar o sexo até então coberto.

O desejo não é apenas por Cristo ou por sua imagem; trata-se também de uma necessidade de descoberta do homem que talvez se comprove em sua parte íntima e proibida, retirando os traços sacros do mito e passando ao desejo pelo outro. Verhoeven repetiria essa busca, décadas depois, em Benedetta, sobre a freira de mesmo nome que mantém contato com Cristo e avança, em outra cena importante, para retirar o manto de um falo inexistente. Para o diretor, a entrega máxima à religiosidade envolve delírio.

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Como Benedetta, o escritor de O Quarto Homem descobre que a busca pelo desejo puro que envolve amar Cristo não pode ser separada de dor constante, de um mundo de provações que impõe o perigo (a loira assassina, a aranha, o diabo). Ao lado da cama de Gerard, na abertura, vemos o crucifixo de madeira e a aranha em sua teia, em seu ritual de busca pelos insetos presos, colocando-os em invólucros como se os guardasse.

A teia da bela mulher loira, Christine (Renée Soutendijk), é sua câmera. É o cinema como intruso, ainda na primeira aparição dela: antes a câmera, à frente de um rosto, de uma mulher atraente que veste vermelho e, desde sempre, mostra-nos a perseguição do olhar. Gerard sente-se atraído. Ele foi para outra cidade dar uma palestra. Christine assiste e filma. Eles terminam juntos, na casa dela, que também vem a ser seu local de trabalho.

Ela é dona de um salão de beleza. Em sua fachada, lemos “Spin” (aranha). Quando ela e o amante aproximam-se do local, percebemos que algumas letras do neon estavam apagadas: o local chama-se, na verdade, “Sphinx” (esfinge). Verhoeven volta a explorar, em outros momentos, o jogo com palavras, com nomes que nascem ou se escondem em outros nomes, ocultos, apagados, como a aranha-mulher que se esconde no Cristo-homem. Como parasitas que se apoderam do corpo dos outros, que os tomam em seus invólucros silenciosamente, à espreita da pureza e da dor divinas. Por que a única pureza possível, para Gerard, está na relação entre homens? Chegamos a pensar até mesmo em misoginia. A mulher, por outro lado, recusa a caricatura, escapa da femme fatale esperada.

Ao chegar na estação de trem, Gerard vê sobre um caixão uma fita com seu nome. O “mestre de cerimônias” do sepultamento – outra das muitas visões delirantes do escritor – então releva uma fita dobrada, com outro nome ao ser aberta, Herman (Thom Hoffman), justamente o do jovem namorado de Christine, o mesmo que Gerard havia visto em outra estação e desejou, o mesmo que perseguirá a ponto de enxergá-lo crucificado.

Não há coincidências nesse labirinto de muitas portas que, como imaginamos, ao melhor estilo de um Buñuel, levará o protagonista à máxima loucura. Verhoeven é ousado, provoca-nos, deixa perguntas no ar, não faz sequer uma personagem que seja agradável. Presos ao olhar de um Gerard trôpego, levado aos domínios de uma crença limitante, temos a crítica do cineasta ao cristianismo que cria imagens de mulheres pecadoras, que com frequência levam o homem à fraqueza, ao mundo real, à castração.

Não estranha que a história de Sansão e Dalila seja aqui explorada – com sinais na pintura do vagão do trem, na marca de produtos de estética de Christine (Dalilah) e na tesoura que ela usa para cortar o cabelo do novo amante e, nos sonhos dele, seu pênis. A força é então medida pela virilidade, e não estranha também que o namorado Herman tenha problemas com ejaculação precoce. Para Verhoeven, usamos a religião para mascarar desejos incontroláveis, um delírio coletivo e compartilhável sobre dor e culpa.

Esse homem fraco e religioso teme a mulher e tudo o que ela representa, a mulher moderna, independente, poderosa, dona de seu próprio negócio, que escolhe seus amantes, toma-os em sua cama e os mata – o que veremos mais tarde em Instinto Selvagem, que Verhoeven fez em sua fase americana, o filme-irmão de O Quarto Homem. Ao mesmo tempo, ficamos com dúvidas: por estar em delírio, não seria ele o único capaz de enxergá-la de verdade? Dado como louco, ele não é mais ouvido. O filme assume um tom de paranoia. Ao seu lado está a enfermeira na qual ele enxerga Maria, a mãe de Jesus, a mulher que, em outras passagens, entregou-lhe uma chave para que abrisse um móvel, ou um túmulo, ou qualquer coisa que o fizesse enxergar. Novas portas para se afundar ainda mais na escuridão.

(De vierde man, Paul Verhoeven, 1983)

Nota: ★★★★☆

AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

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