Descobrir que um filme pode ser mais que uma “camada grossa de algodão rosa” é estimulante. Mais que entretenimento, um filme pode e deve ser um estímulo para pensar em questões humanas e sociais, como o patriarcado e a mulher na sociedade.
Ainda não vi Barbie. Sinto-me um extraterreste entre críticos e cinéfilos: alguém que não assistiu ao filme mais comentado do momento, mais debatido, que deve se tornar a maior bilheteria do ano. E, mesmo sem tê-lo visto, consigo ter uma boa ideia do que está opondo – nas redes sociais, na imprensa – as pessoas de direita às de esquerda.
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Os roteiristas Greta Gerwig e Noah Baumbach são inteligentes e, creio eu, progressistas. Ao aceitarem um produto como tal, sabiam que não poderiam escapar da “camada grossa de algodão rosa”, nem do entretenimento. E sabiam que podiam, e deviam, embutir algo inteligente nessa receita: um filme alinhado aos nossos tempos, à modernidade.
Quanto a Barbie, paro por aqui. Sobre o assunto “patriarcado”, há mais a ser dito. Outros filmes que abordam a questão e que merecem ser descobertos. Citei um recente em coluna anterior: Unclenching the Fists (sem título nacional), da russa Kira Kovalenko, sobre uma adolescente aprisionada pelo próprio pai e que tenta fugir com o irmão.
Filmes recentes ambientados no Oriente Médio escancaram a questão, tão elástica e ainda atual: dentro do assunto “patriarcado” encontramos o machismo, a religião, a misoginia, o preconceito e muitos outros. Penso no extraordinário Holy Spider, de Ali Abbasi, sobre um serial killer que, no Irã, mata prostitutas e mais tarde é defendido por parcela da população, como se seus crimes fossem justificados perante sua religião.
Outra boa pedida: O Julgamento de Viviane Amsalem, do casal Ronit e Shlomi Elkabetz, de 2014, no qual a própria Ronit vive a personagem-título, uma mulher que tenta, de todas as formas, conquistar o divórcio e não consegue. O filme é ambientado em Israel. O tribunal é comandado por homens brancos, mais velhos. A mulher quase não tem voz e, durante sessões e mais sessões nas quais impera o diálogo, assistimos ao desespero.
O belo Retrato de uma Jovem em Chamas, de Céline Sciamma, também trata do assunto. Duas jovens amam-se. Uma foi contratada para pintar um retrato da outra. Mas uma delas está prometida a um homem que sequer conhece. Cumprem-se os ritos retrógrados, impõe-se a cultura do atraso – enquanto Sciamma recorre à própria arte e aos seus detalhes para expor a grandeza dos sentimentos em questão e os desafios a serem vencidos pela mulher.
No cinema brasileiro, tão rico, difícil não pensar em Lavoura Arcaica, aqui aos olhos de um homem, um rapaz que fugiu da família e depois retornou. Alguém que ousou cometer o pecado em seio tradicional, cujo centro é ocupado pelo pai amedrontador de Raul Cortez, uma das melhores representações do patriarcalismo na tela. O filme de Luiz Fernando Carvalho é um acontecimento, um dos maiores do nosso cinema.
Em todos esses filmes, mulheres e homens descobrem ser donos de seus próprios destinos: cruzam uma linha e, mesmo quando fracassam, compreendem que moveram algo. Não são filmes fáceis. Àqueles que se veem encantados pela “camada grossa de algodão rosa”, fica o convite para conhecer essas obras, ampliar o olhar e perceber que, apesar dos avanços, muito ainda pode unir homens – e, tristemente, algumas mulheres – de diferentes cantos do mundo.
Publicado originalmente no Jornal de Jundiaí em 26 de julho de 2023.
AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista
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